Detalhes da “guerra secreta” de Israel contra o Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, foram revelados por uma reportagem do jornal britânico The Guardian. De acordo com as informações, o Estado colonial recorreu a espionagem, hacking, ameaças, intimidação e mesmo tentativas de chantagem contra promotores da corte.
A investigação do The Guardian foi conduzida em parceria com as redes israelenses +972 e Local Call, a partir de entrevistas com mais de duas dúzias de agentes e ex-agentes de inteligência e governo, funcionários de Haia, diplomatas e advogados próximos ao caso.
O dossiê expôs ameaças pessoais do ex-chefe do Mossad, Yossi Cohen, à ex-promotora-chefe da corte, Fatou Bensouda, e sua família, durante uma série de encontros a portas fechadas. Cohen desejava dissuadi-la de um inquérito sobre crimes de guerra na Cisjordânia e Gaza.
As ações tiveram início em janeiro de 2015, quando a Palestina aderiu à corte. Em seguida, Tel Aviv passou a utilizar um vocabulário militar contra Haia, ao descrever os esforços como “guerra que precisa ser travada” contra a instituição internacional.
Segundo relatos, a campanha foi autorizada pelo Conselho de Segurança Nacional do governo e pelo establishment militar e de inteligência, com autorização expressa do primeiro-ministro e da presidência de Israel, além de generais.
Fontes mencionaram questionamentos de Cohen sobre a segurança de Bensouda e sua família, em tom de ameaça, em ao menos três ocasiões entre o fim de 2019 e começo de 2021.
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Em um incidente preocupante, o chefe do Mossad mostrou fotografias do marido de Bensouda, tiradas às escondidas, durante uma viagem a Londres. Em outra ocasião, afirmou: “Você deveria nos ajudar e deixar nós cuidarmos de você. Você não quer que nada aconteça com sua família”.
A promotora demonstrou apreensão ao registrar uma queixa a um grupo seleto de oficiais de Haia, reportaram três fontes.
O Mossad espionou ativamente Bensouda em busca de informações comprometedoras, porém sem êxito. Bensouda anunciou, em março de 2021, a abertura de um inquérito oficial, até então seguindo os rastros das violações cometidas em Gaza em 2014.
Em dezembro de 2019, a advogada nascida em Gâmbia concluiu seu exame preliminar e deferiu o cumprimento de critérios legais, sob o Estatuto de Roma, para seguir com a investigação. Em março de 2020, Israel pediu assistência de Washington, levando o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a instituir sanções arbitrárias à promotoria.
Em fevereiro de 2021, a câmara pré-julgamento confirmou a jurisdição da corte nos territórios ocupados, ratificando a abertura do inquérito no mês seguinte.
O mandato de Bensouda terminou em junho, deixando o processo como herança a seu sucessor anglo-iraquiano Karim Khan. Após procrastinar o caso, Khan se viu forçado, diante do genocídio em Gaza, a requerer mandados de prisão contra o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, na última semana, além de três líderes do Hamas.
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É a primeira vez que o Tribunal Penal Internacional age contra líderes ditos ocidentais, próximos de Estados Unidos e Europa.
Khan também relatou ameaças, ao sugerir ações legais contra “tentativas de impedir, intimidar ou influenciar indevidamente” oficiais de Haia.
Uma fonte acusou Cohen de recorrer a “medidas desprezíveis”, incluindo “stalking” — isto é, ao perseguir Bensouda. Outra fonte observou: “O fato de escolherem o diretor do Mossad como o emissário não-oficial do premiê denota intimidação, por definição — porém fracassou”.
“Cinco fontes próximas da inteligência israelense confirmaram espionar de modo corriqueiro os telefonemas entre oficiais palestinos e Bensouda e seus assessores”, informou o The Guardian. “Graças a seu acesso amplo à infraestrutura de telecomunicações palestina, disseram as fontes, agentes conseguiram capturar chamadas sem sequer instalar spyware”.
Conforme ações do Shin Bet, agência interna de espionagem em Israel, querelantes do processo foram perseguidos e mesmo designados “terroristas”, como a ong Al-Haq.
Israel também manteve um canal secreto de pressão à promotoria entre 2017 e 2019, mediante advogados do governo e diplomatas que frequentemente viajavam a Haia. Os encontros — que incluíram as ameaças — foram autorizados por Netanyahu.
As denúncias sobre a empreitada contra Haia foram recebidas com indignação de experts legais e ex-oficiais da corte. Segundo o Estatuto de Roma, tratado fundador do TPI, as ações de Israel contra a promotoria podem incorrer em crime de obstrução da justiça.
No contexto presente, o Tribunal Penal Internacional robusteceu sua segurança com varreduras regulares nos gabinetes da promotoria, incluindo checagem de aparelhos, áreas onde celulares são proibidos, averiguações semanais e introdução de equipamentos especializados.
Um porta-voz da corte preferiu não dar detalhes, mas admitiu que o gabinete de Khan recebeu “diversas formas de ameaça e contatos que podem ser vistos como tentativas de influenciar, de maneira imprópria, suas atividades”.
Israel é também réu por genocídio no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), instituição-irmã em Haia que julga Estados. A denúncia encabeçada pela África do Sul, deferida em janeiro, incorreu em uma série de medidas cautelares emitidas por Haia, entre as quais, a cessação da operação em Rafah, no extremo sul de Gaza, e fluxo humanitário.
O regime israelense, não obstante, desacatou as ordens, incluindo bombardeios conduzidos no último domingo (26) contra um campo de refugiados em Rafah. Imagens gráficas, como corpos carbonizados de crianças, circularam online.
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