O México elegeu Claudia Sheinbaum, ex-prefeita da capital, como a primeira mulher a presidir o país, após uma eleição acalorada contestada neste domingo (2). Sheinbaum, de 61 anos, venceu 58% dos votos, segundo resultados preliminares do Instituto Nacional Eleitoral (INE).
Sheinbaum é herdeira política do mandatário mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO), do partido Movimento Regeneração Nacional (Morena). López Obrador alcançou a presidência em 2018, com uma campanha notavelmente anti-establishment.
Ao comentar sua vitória na rede social X (Twitter), Sheinbaum declarou: “Me comprometo que não vou decepcionar vocês. Há história, há pátria, há povo e há compromisso!”
Em outra postagem destacou: “Pela primeira vez em 200 anos da República, haverá uma mulher presidenta e será transformadora. Agradece a todos os mexicanos. Hoje, demonstramos, com o nosso voto, que somos um povo democrático”.
Na noite de domingo, a principal candidata de oposição, Xóchitl Galvéz, do conservador Partido de Ação Nacional (PAN), declarou à imprensa: “Há alguns minutos, contactei … Sheinbaum para reconhecer o resultado eleitoral”.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, saudou a vitória: “Estou muito feliz com a vitória de Claudia Sheinbaum por ser uma mulher progressista à frente da presidência do México, uma vitória da democracia, e pelo meu grande companheiro, López Obrador — que fez um governo extraordinário. Pretendo viajar ao México este ano para fortalecer nossas relações … Somos as duas maiores economias da América Latina”.
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O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assim como o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, parabenizaram a presidenta eleita. Ambos os países passam por eleições futuramente, em novembro deste ano e outubro de 2025, respectivamente.
Durante a campanha, Sheinbaum encarou dúvidas sobre sua independência em relação a López Obrador, um presidente que usufrui de ampla popularidade no México, apesar de críticas sobre supostas tendências autoritárias.
O presidente, contudo, prometeu se aposentar: “Nunca mais vou aparecer em eventos públicos. Não quero ser assessor de ninguém. Não quero ter nada a ver com a classe política. Não quero sequer falar de política mais”.
Sheinbaum vem de uma família de ativistas, juntando-se a movimentos de protestos estudantis desde a adolescência. Em 2000, López Obrado, então prefeito da Cidade do México, a escolheu como chefe de seu gabinete ambiental.
Em âmbito interno, Sheinbaum terá de enfrentar numerosos desafios, com a criminalidade em primeiro plano. O México alcançou uma média anual de 30 mil assassinatos por ano, com mais de cem mil pessoas desaparecidas.
A campanha eleitoral deste ano foi particularmente violenta, com 37 candidatos assassinados e centenas forçados a se retirarem da corrida. A segurança é a principal preocupação para 60% da população, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Geografia (INEGI).
Política externa
Em âmbito externo, o posicionamento de Sheinbaum ainda é um mistério, seja na conjuntura da América Latina — com a retomada de governos de esquerda frente à ascensão da ultradireita —, seja com o eventual retorno de Donald Trump à Casa Branca ou com questões críticas no além-mar, como é o caso do genocídio israelense em Gaza.
Sheinbaum será a primeira presidente do México com origens judaicas, incluindo sobreviventes do Holocausto, apesar de manter uma imagem secular em sua vida pública.
Seu governo terá de decidir se seguirá a promessa de López Obrador de reconhecer o Estado da Palestina, após quase 150 países. Sheinbaum não comentou a matéria, apesar de protestos pró-Palestina no país, como reação ao genocídio em Gaza.
Na última semana, manifestantes indignados com um massacre em Rafah, deixando dezenas de mortos, sobretudo crianças, atearam fogo na embaixada israelense na Cidade do México.
Em janeiro de 2009, Sheinbaum escreveu sobre a questão ao diário mexicano La Jornada, diante da então escalada israelense em Gaza.
“Por conta de minhas origens judaicas, de meu amor pelo México e porque me sinto cidadã do mundo, compartilho com milhões o desejo por justiça, igualdade, fraternidade e paz; portanto, não vejo nada senão horror nas imagens dos bombardeios”, declarou na ocasião. “Nada justifica o assassinato de civis palestinos. Nada, nada, nada pode justificar matar uma criança”.
Durante a campanha, Sheinbaum sofreu incidentes de antissemitismo. O ex-presidente Vicente Fox — direitista tradicional, próximo de George W. Bush — chegou a chamá-la pejorativamente de “judia búlgara”.
O México, sob López Obrador, solicitou entrada no processo de genocídio israelense no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), radicado em Haia, do lado da acusação, encabeçada pela África do Sul, com participação de Brasil e outros países.
A queixa foi deferida em 26 de janeiro, sucedida por mandados cautelares da corte para que Tel Aviv comedisse suas ações em Gaza, permitisse o fluxo humanitária e — mais recentemente — cessasse sua intervenção em Rafah, no extremo sul do território. Contudo, sem aval.
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López Obrador preferiu não caracterizar a agressão israelense como “genocídio”, ao demonstrar ambiguidade perante a matéria. Em Gaza, são 32 mil mortos e 80 mil feridos até então, além de dois milhões de desabrigados. Entre as fatalidades, cerca de 15 mil são crianças.
A oscilação do governo mexicano, contudo, desagradou ambos os lados. Em 9 de outubro, após a operação transfronteiriça do Hamas, que capturou colonos e soldados, López Obrador ofertou apoio a Tel Aviv, mas condenou a retaliação em Gaza.
“Respeitamos o governo israelense e mais ainda seu povo”, alegou o presidente. “Mas o México não quer a guerra. Somos pacifistas e não queremos que ninguém perca sua vida, seja palestino ou israelense”.
Einat Kranz, embaixador de Israel na Cidade do México, porém, acusou López Obrado de “apoiar o terrorismo … ao ficar em cima do muro”.
Semanas depois, o presidente negou a possibilidade de seguir as ações de Bolívia e Colômbia e romper relações com o Estado ocupante: “Quero deixar claro. Nós não vamos cortar laços com Israel ou assumir uma posição que não seja conclamar a paz”.
Para Témoris Grecko, repórter de Oriente Médio para o jornal mexicano Milenio, a reticência de López Obrador em aderir ao posicionamento de governos de esquerda na América Latina sugere o peso dos contratos comerciais e militares com Israel e Estados Unidos.
“O México compra produtos de Israel, como armas e spyware, e há contratos para organizações israelenses treinarem as polícias e agências de segurança privada”, explicou Grecko. “A empresa Mexicana Cemex fornece matéria-prima para o muro [na Cisjordânia ocupada]”.
Israel é o segundo maior fornecedor de tecnologia e treinamento às Forças Armadas mexicanas.
Em maio, ativistas da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), na capital, aderiram ao movimento internacional de protesto antiguerra, com um acampamento de apoio a Gaza no campus, pedindo ruptura de relações. Após concessões da instituição, o acampamento migrou à Praça Zocalo, em frente ao Palácio Nacional.
Para Edith Olivares Ferreto, diretora da Anistia Internacional no México, Sheinbaum deve herdar a ambiguidade do atual mandatário — seja sobre violações de direitos humanos em casa ou no exterior. Outro problema é a “subordinação” aos Estados Unidos.
Para Eduardo Ibañez, porém, não há expectativas. Ibañez representa parentes de 43 estudantes que desapareceram de um colégio rural em Ayotzinapa em 2014. O sequestro implicou cartéis e as Forças Armadas.
Um dos suspeitos de encobrir o crime, o oficial militar Tomás Zerón, fugiu a Israel em 2020, sob promessas de López Obrador para extraditá-lo e prendê-lo.
“A falta de progresso neste caso é interpretada como proteção de facto do governo israelense a Tomás Zerón e ameaça se tornar um fator disruptivo”, alertou em nota o Ministério de Relações Exteriores do México, após meses de tentativas.
Para Ibañez, deve persistir o impasse: “Pobre Palestina, pobre Ayotzinapa. Não acho que muita coisa vai melhorar”.