Eleições na Índia: Como as políticas hediondas de Modi se esconderam em plena vista

À véspera do anúncio dos resultados nas eleições gerais da Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi e seu Partido Bharatiya Janata (BJP) parecem próximos de uma vitória retumbante. Porém uma coisa é certa — Modi travou a mais sinistra campanha eleitoral desde a independência da Índia, há 78 anos.

Oponentes foram presos. O Congresso Nacional da Índia (INC), maior partido de oposição, parte fundamental da luta por independência do país, teve seus recursos bancários congelados. “Esta é uma ação criminosa contra o Congresso”, destacou seu ex-líder Rahul Gandhi. “A ideia de que a Índia é uma democracia é uma mentira. Não há democracia na Índia hoje”.

Aakar Patel, diretor da Anistia Internacional para a Índia, observou: “Autoridades exploraram de maneira recorrente e usaram como arma diversas leis fiscais e de terrorismo, com o objetivo de reprimir sistematicamente defensores de direitos humanos, ativistas, críticos, organizações sem fins lucrativos, jornalistas, estudantes, acadêmicos e opositores políticos”.

Modi acusa os muçulmanos na Índia de serem “infiltrados”. Seu partido produziu vários vídeos inflamatórios para a campanha, ao retratar políticos do Congresso supostamente roubando para dar aos muçulmanos.

Ainda assim, líderes globais não expressaram apreensão alguma sobre a provável terceira vitória consecutiva de Modi — um triunfo que, muitos temem, pode abolir a democracia na Índia.

“Hindu Rashtra”

O livro Gujarat Under Modi (Gujarat Sob Modi), de Christophe Jaffrelot — um estudo rigoroso, profundo e importante — demonstra que qualquer pessoa que prestasse atenção no histórico e nas ações do premiê poderia prever precisamente no que se tornaria a Índia caso o elegesse.

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Jaffrelot reconstrói em detalhes os 14 anos de Modi como ministro-chefe de Gujarat — o maior estado ocidental do país —, entre 2001 e 2014, e como seu mandato foi crucial para consolidar uma versão horripilante da vida política que hoje domina a Índia.

Gujarat foi laboratório da ideia de “Hindu Rashtra”, ou nação hindu. A partir de artigos de jornal, livros e dossiês em domínio público, Jaffrelot confirma que o histórico de Modi em Gujarat foi impressionante, até mesmo revolucionário — no entanto, absolutamente cruel.

Modi nasceu no estado em 1950, de uma casta baixa de trabalhadores petroleiros. Ainda como criança, se viu nas fileiras do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), bloco paramilitar nacionalista hindu (Hindutva) formado nos moldes dos movimentos fascistas da Europa da década de 1930. Na década de 1970, Modi já era um funcionário em tempo integral da controversa organização, ganhando proeminência.

A infame violência de Gujarat em 2002, que incidiu em confrontos entre muçulmanos e hindus, e horrorizou o Ocidente, fez a carreira de Modi. Sem ela, jamais conquistaria sua popularidade e hegemonia no estado. Modi venceu uma eleição paralela que o permitiu integrar a assembleia estadual a partir de fevereiro de 2002. Imediatamente, de forma nada ortodoxa, foi nomeado o ministro-chefe do estado.

Três dias depois, 59 hindus foram mortos em um trem que carregava ativistas ultranacionalistas. Jamais se confirmou quem planejou o ataque. O que sucedeu foi uma onda de violência que o estado de Gujarat — deveras familiarizado com embates religiosos — jamais havia visto. A vasta maioria das vítimas era parte da comunidade islâmica.

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Os agressores “eram perfeitamente disciplinados e extraordinariamente numerosos”. Chegavam “em caminhões” nos bairros islâmicos, vestindo um uniforme de “calça cáqui e faixas açafrão”, armados com facas, espadas e cilindros de gás, recorda o livro. Oficialmente, 1.169 muçulmanos foram mortos, mas ongs apontam um número mais próximo de duas mil vítimas.

Violência pré-planejada

Jaffrelot destrói o mito de que se tratou de um surto arbitrário de violência. O autor mostra se tratar de um evento cuidadosamente organizado e premeditado. Casas e negócios muçulmanos foram alvejados mesmo quando carregavam nomes hindus, “demonstrando a realização de uma pesquisa preliminar para verificar a identidade dos donos”.]

Oficiais britânicos que investigaram o incidente concordaram que a violência fora planejada.

Em alguns lugares a polícia ignorou os ataques; em outros ajudou e armou ativamente núcleos agressores. Vários funcionários públicos de alto escalão admitiram, em condição de anonimato, que políticos de destaque também se envolveram na violência. Dentre eles, o próprio Modi, de acordo com o veterano da polícia Sanjiv Bhatt.

“O ministro-chefe Narendra Modi expressou o ponto de vista de que as emoções entre hindus estariam represadas e que seria imperativo permiti-los descarregar sua fúria”, comentou Bhatt.

Não menos que 527 mesquitas, madraças, cemitérios e santuários islâmicos foram danificados ou destruídos — incluindo o túmulo de Wali Gujarati, fundador da poesia urdu.

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Os levantes de Gujarat, que resultaram na proibição de que Modi entrasse nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, projetaram-no à fama. Modi convocou eleições antecipadas no estado mesmo embora a violência não cedesse. Sua vitória esmagadora, argumenta o livro, provou a Modi que a polarização religiosa poderia ajudar sua carreira política.

Modi repetiu essa fórmula desde então, apesar de sua Índia mais recente — salvo a violência de Delhi em 2020 — ter vivenciado menos casos de insurreição de massa e cada vez mais casos, no seu lugar, de linchamentos.

O livro não culpa a islamofobia em uma minoria hindu, mas nota pouca empatia após a onda de ataques de 2002, de modo que “hindus de classe média, em particular, aprovaram os eventos e continuaram a apoiar aqueles aos quais a violência fora atribuída”.

Jaffrelot reafirma que o governo de Modi em Gujarat “buscou uma estratégia de politização da polícia e do judiciário” do estado, para que seu partido fosse poupado de “inquéritos efetivos” sobre a violência. Policiais que ostentaram “viés comunitário” foram promovidos um por um, à medida que colegas mais profissionais foram ostracizados. Neste entremeio, membros do grupo militante Vishwa Hindu Parishad (VHP), implicado na violência, chegaram à promotoria pública precisamente nos distritos mais atingidos pela crise.

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Não houve justiça para as vítimas da comunidade islâmica. No distrito de Sabarkantha, o chefe do ramo local do VHP, Bharat Bhatt, alçou a promotoria logo em 2003. Diversos colegas também estavam filiados ao movimento nacionalista hindu. Conforme o próprio Bhatt, “à medida que o partido governante é quem faz as nomeações, todos eles estavam conosco”.

Bhatt aconselhou aqueles que mataram muçulmanos — seus amigos — “a não sorrir quando o encontrassem na corte”.

Então, veio à tona o caso de Bilkis Yakub Rasool, mulher muçulmana que estava grávida quando sofreu um estupro coletivo na mão de seus próprios vizinhos, depois de 15 familiares, incluindo sua filha de três anos, serem assassinados. A polícia, primeiro, se negou a registrar a queixa por estupro. Em seguida, em 2003, com apoio de uma ong, a vítima conseguiu convencer a Suprema Corte a ordenar o governo estadual a abrir um processo.

A polícia foi à sua casa no meio da noite, acordando-a subitamente, para que “retornasse à cena do crime e reencenasse o estupro e os assassinatos”. Eventualmente, treze perpetradores foram condenados — onze deles sob pena perpétua.

Apartheid de facto

De maneira ainda mais surreal, ao longo dos anos, Modi orquestrou uma série de bizarríssimos “encontros falsos” com muçulmanos que “supostamente tentaram matá-lo”. Modi sobreviveu a cada suposto atentado e cultivou, pouco a pouco, uma imagem de “salvador hindu”.

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Uma de suas forças como governante do estado foi dispersar, quase definitivamente, narrativas de predominância ocidental sobre seu país: de que Modi alienou eleitores muçulmanos, incitou a islamofobia e encorajou uma identidade supremacista hindu para todo o território. Conforme Jaffrelot, no entanto, as análises ainda carecem de contundência, para que reflitam a realidade: de que a vida dos muçulmanos em Gujarat sob Modi — sem falar do país atual — se assemelha muito mais a um apartheid de facto (apesar do autor evitar o termo).

No entanto, destaca que os muçulmanos em Gujarat “são vítimas explícitas de discriminação ao passo que fundos e programas — alguns deles especificamente destinados a eles pelo governo central — jamais lhe são concedidos pelo governo estadual”. Quando o governo central enviava bolsas de estudos aos muçulmanos, o governo de Modi se negava a distribui-las.

Nas grandes cidades, como Ahmedabad, os muçulmanos foram sistematicamente empurrados a guetos, impedidos de viver entre os hindus. A cultura aristocrática de castas foi imposta a toda sociedade local, enquanto “castas baixas”, como dálites (“intocáveis”) e cristãos, foram mantidas subalternas.

Os muçulmanos, como se não bastasse, passaram a viver sob linchamento das massas.

“Jihad do amor”

Jaffrelot explica que o Bharatiya Janata criou um novo modelo de estado em Gujarat, ao operar mediante grupos vigilantes de nacionalistas hindus que passaram a colaborar com a polícia. Leis foram aprovadas para proibir o consumo de carne de vaca, conforme as crenças das altas castas hindus, enquanto grupos militantes tomavam as ruas para coagir o vegetarianismo.

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Tais grupos buscam ainda assegurar que mulheres hindus não tenham qualquer relacionamento romântico com rapazes muçulmanos e que famílias hindus não vendam suas propriedades aos muçulmanos — ações que descrevem como “jihad do amor” e “jihad da terra” respectivamente. Tudo isso compôs um gangsterismo sancionado pelo estado — protótipo do ideal supremacista do “Hindu Rashtra”.

Modi também aperfeiçoou sua abordagem econômica em Gujarat. A população local costumava ser célebre por seu empreendedorismo, mas Modi mudou isso, ao introduzir megaprojetos que concentravam investimentos nas mãos de algumas poucas corporações.

Segundo Jaffrelot, o modelo resultante “gerou crescimento, mas não desenvolvimento”. O setor da indústria criou alguns bons empregos, enquanto educação e saúde pública foram ignoradas. As desigualdades entre aldeias e cidades decolaram, assim como as disparidades entre classes sociais — maior mancha no governo de Modi em toda a Índia nos anos recentes.

Entre 2017 e 2018, a Índia vivenciou sua maior taxa de desemprego em meio século, enquanto bilionários próximos a Modi prosperaram.

Jaffrelot registra também como Modi alimentou um culto a sua própria imagem em Gujarat. Sua visão de mundo foi promovida agressivamente nas escolas públicas, ao ponto de o nazismo ser representado com simpatia nas cartilhas e Hitler ser descrito como um “forte patriota”.

Modi essencialmente subjugou o aparato do estado nacionalista hindu para promover algo mais específico, que muitos descrevem como “Moditva”. Em vez de mostrar comedimento diante das preferências ideológicas e institucionais do alto comando das forças militantes, Modi atacou, de maneira implacável, figuras nacionalistas que considerava uma ameaça a seu poder. O governo em Gujarat chegou até mesmo a destruir santuários hindus — aparentemente para mostrar ao Vishwa Hindu Parishad seu devido lugar na nova ordem das coisas.

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O nacionalismo hindu em Gujarat, mais tarde na Índia, converteu-se em um quase sinônimo do próprio Narendra Modi — apelidado de “Imperador dos Corações Hindus”. Sua base de apoio se consolidou a partir de empresários e da classe média.

Apoiadores do Partido Bharatiya Janata Party (BJP) celebram vitória com uma efígie do premiê indiano, Narendra Modi, em New Delhi, 4 de junho de 2024 [Amarjeet Kumar Singh/Agência Anadolu]

“Cadinho”

Pela primeira vez, contudo, Modi projetou o apelo do nacionalismo hindu a um nicho maior da sociedade — incluindo segmentos conhecidos oficialmente como as “Outras Castas Atrasadas”. Como agente político habilidoso e populista, Modi tornou o Hindutva mais amplo e dinâmico do que nunca.

Para Jaffrelot, “o estado de Gujarat foi o campo de testes do nacionalismo hindu, o cadinho que deu forma às políticas do Hindutva, que se desenrolam em âmbito nacional desde 2014”. O livro analisa, em último caso, a ascensão de Modi como “gênio político”, incluindo o apoio das elites econômicas e da classe média, que sabiam o que estavam fazendo.

O mundo também sabia: somente quando Modi se tornou primeiro-ministro, Estados Unidos e Grã-Bretanha revogaram sua proibição de entrada. Desde então, países ocidentais o recebem de braços abertos. O mesmo vale, é claro, para a maioria do mundo islâmico, sobretudo os Estados ricos em petróleo do Golfo.

O Modi que abraçaram, no entanto, sob o pretexto da importância econômica e geopolítica da Índia, não era “apenas” um agitador com uma retórica de mal gosto, responsável por alienar as minorias — mas sim um político experiente com um histórico marcante que podemos descrever somente como hediondo.

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Agora, durante mais um ciclo eleitoral, com a flagrante escalada do governo contra a imprensa e opositores, o mundo novamente lava suas mãos.

Este livro não poderia ter sido publicado por um escritor radicado na Índia. Seu manuscrito foi submetido à editora há mais de uma década, no fim de 2013, às vésperas da primeira vitória de Modi ao cargo máximo do executivo na Índia. Advogados o consideram, porém, como uma obra de “alto risco” e lhe pediram para cortar trechos que Jaffrelot editou integralmente.

Somente em 2020, o autor e sua editora, Hurst & Company, resolveram publicar o texto original, com emendas de contexto; entretnato, sem voltar a redigi-lo. O momento é bastante oportuno porque o livro demonstra “o que já sabíamos muito bem em 2013, um ano antes do eleitorado indiano decidir escolher Narendra Modi”.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 3 de junho de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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