O discurso ocidental sobre as circunstâncias por trás da criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), há 75 anos, não é nada convincente.
No entanto, esse discurso excessivamente simplificado deve ser examinado para que o atual declínio da organização seja apreciado além da política egoísta dos membros da OTAN.
A página de registros históricos do Departamento de Estado dos EUA fala da invenção da OTAN em uma linguagem adequada para um livro de história do ensino médio americano.
“Após a destruição da Segunda Guerra Mundial, as nações da Europa lutaram para reconstruir suas economias e garantir sua segurança”, diz a página, o que obrigou os EUA a agir: “(integrar) a Europa como vital para a prevenção da expansão comunista pelo continente”.
Essa é a lógica típica da doutrina inicial da OTAN. Ela pode ser deduzida da maioria das declarações feitas pelos países ocidentais que estabeleceram e continuam a dominar a organização.
A linguagem oscila entre um discurso amistoso – por exemplo, a referência de Harry Truman à OTAN como um “ato de vizinhança” – e um discurso ameaçador, também a linguagem dura de Truman contra “aqueles que poderiam fomentar a ideia criminosa de recorrer à guerra”.
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A realidade, no entanto, continua muito diferente.
De fato, os EUA saíram muito mais fortes, militar e economicamente, após a Segunda Guerra Mundial. Isso se refletiu no Plano Marshall, um “Plano de Recuperação Econômica”, que foi um ato estratégico, não de caridade. Ele planejou a recuperação econômica de países selecionados que se tornariam aliados globais dos EUA nas décadas seguintes.
Após sua criação, o então Secretário de Estado canadense Lester Pearson se referiu à “comunidade” da OTAN como parte da “comunidade mundial”, associando a força da primeira à “preservação da paz” da segunda.
Por mais inócua que essa linguagem possa parecer, ela introduziu uma relação paternal entre a OTAN, dominada pelos EUA, e o resto do mundo. Assim, permitiu que os poderosos membros da organização definissem, em nome do resto do mundo – e muitas vezes fora do guarda-chuva das Nações Unidas – noções como “paz”, “segurança”, “ameaça” e, por fim, “terrorismo”.
Um exemplo disso é que o primeiro grande conflito instigado pela OTAN não teve como alvo ameaças externas à Europa ou aos territórios dos EUA, mas ocorreu a milhares de quilômetros de distância, na Península Coreana.
O discurso político do Ocidente queria ver a guerra civil na península, antes da intervenção da OTAN, como um exemplo de “agressão comunista”. Essa “agressão” supostamente forçou a OTAN a reagir. Não é preciso dizer que a Guerra da Coreia (1950-53) foi destrutiva.
Os 75 anos que se passaram desde então provaram a fragilidade desse argumento. A União Soviética foi desmantelada há muito tempo e a Coreia do Norte tem lutado desesperadamente para sair de seu isolamento. No entanto, permanece um estado frágil de “sem guerra, sem paz”. Ele pode se transformar em uma guerra total a qualquer momento.
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Entretanto, o que a guerra conseguiu foi algo totalmente diferente. O constante estado de não paz fornece uma justificativa para a presença militar permanente dos EUA na região.
Resultados semelhantes se seguiram à maioria das outras intervenções da OTAN: Iraque(1991 e 2003), Iugoslávia (1999), Afeganistão (2001), Líbia(2011) e assim por diante.
No entanto, a capacidade de iniciar ou exacerbar conflitos e a incapacidade, ou talvez a falta de vontade, de acabar permanentemente com as guerras não é a verdadeira crise da OTAN, 75 anos após sua criação.
Em um artigo que marcou o aniversário, o Secretário de Defesa do Reino Unido, Grant Shapps, escreveu no Daily Telegraph que a OTAN deve aceitar que está agora em um “mundo pré-guerra”.
Ele criticou os membros da OTAN que “ainda não conseguiram” cumprir o gasto mínimo exigido com a defesa, que equivale a 2% do PIB nacional total. “Não podemos nos dar ao luxo de brincar de roleta russa com nosso futuro”, escreveu ele.
As ansiedades de Shapps são frequentemente expressas por outros líderes e autoridades importantes da OTAN, que alertam sobre uma guerra iminente com a Rússia ou criticam uns aos outros pela influência cada vez menor da outrora poderosa organização.
Grande parte dessa culpa foi atribuída ao ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que ameaçou abertamente deixar a OTAN durante seu único mandato.
Os comentários depreciativos e as ameaças de Trump, no entanto, dificilmente foram os instigadores da crise. Eles foram sintomas de problemas crescentes, que continuaram por anos após a dramática saída de Trump da Casa Branca.
A crise da OTAN pode ser resumida da seguinte forma:
Primeiro, as formações geopolíticas que existiam após o colapso da União Soviética e seu Pacto de Varsóvia não existem mais.
Segundo, o principal aspecto da nova competição global não pode ser reduzido a termos militares. Em vez disso, ele é econômico.
Terceiro, a Europa agora depende em grande parte das fontes de energia, do comércio e até mesmo da integração tecnológica com países que os EUA consideram inimigos: China, Rússia e outros. Portanto, se a Europa se permitir aderir à linguagem polarizada dos EUA sobre o que constitui inimigos e aliados, pagará um preço alto, especialmente porque as economias da UE já estão lutando sob o peso das guerras contínuas e da constante interrupção do fornecimento de energia.
Em quarto lugar, resolver todos esses desafios e outros por meio do lançamento de bombas não é mais uma opção. O “inimigo” é forte demais e a natureza mutável da guerra torna a guerra tradicional ineficaz.
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Embora o mundo tenha mudado muito, a OTAN continua comprometida com uma doutrina política de uma época passada. E mesmo que o limite de dois por cento seja atingido, o problema não desaparecerá.
É hora de a OTAN reexaminar seu legado de 75 anos e ser corajosa o suficiente para mudar completamente de direção; em vez de optar por um estado de não-paz, ela deve buscar a paz real.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.