O Chile subscreverá a demanda de acusação da África do Sul contra o Estado de Israel no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). Na cerimônia de prestação de contas — o ritual político de “accountability” do sistema político chileno —, Gabriel Boric anunciou que seu país fará parte do processo movido por juristas sul-africanos em Haia, reforçando a acusação de genocídio.
O discurso do ex-líder estudantil buscou o chamado “equilíbrio” político. De um lado, o chefe de Estado lamentou a situação catastrófica em Gaza e, ao mesmo tempo, exigiu a libertação dos reféns mantidos pelo movimento Hamas.
Boric foi enfático, ao afirmar que é necessária uma resposta firme da comunidade internacional:
Decidi que o Chile se tornará parte e apoiará o caso que a África do Sul apresentou contra Israel perante o Tribunal Internacional de Justiça em Haia, no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio. Ordenei às equipes do Ministério de Relações Exteriores que preparassem um documento com nossos argumentos.
No informe, o jovem mandatário, também advogado, explicitou sua principal preocupação: “Nunca deixaremos de nos sentir indignados com as ações indiscriminadas e absolutamente desproporcionais contra civis inocentes, especialmente as mulheres e crianças palestinas, que o exército israelense está a levar a cabo.”
A posição do sionismo no Chile
Uma vez conhecidas as palavras do presidente chileno, o embaixador de Israel no Chile, Gil Artzyeli, reagiu através de um comunicado público na rede social X (Twitter). “A Câmara dos Deputados do Chile rejeitou um projeto de resolução que procurava condenar o ataque do Hamas a Israel, cometido em 7 de outubro. A iniciativa contou com o voto a favor de 46 parlamentares, mas teve 34 contra, da FA [Frente Ampla] e do PC [Partido Comunista], e 15 abstenções. E por não ter obtido o quórum foi rejeitada”, alegou o embaixador.
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Seguindo essa linha, o diplomata indicado por Netanyahu afirmou que “a ofensiva de outubro de 2023 foi o pior massacre sofrido pelo povo judeu depois do Holocausto” e que “continuam a atacar-nos por nos defendermos para evitar mais um massacre”. Foi desta maneira que o representante do apartheid reafirmou o suposto direito do Estado sionista de promover limpeza étnica e pogroms televisionados ao vivo e em cores.
O embaixador se posicionou como um agitador da extrema-direita dentro do Chile, ao exigir mobilização contra grupos estudantis que denunciam professores sionistas de pregarem abertamente a favor do genocídio palestino. Na troca de palavras e na guerra semântica que se seguiu, Artzyeli confundiu propositadamente o sionismo com o exercício da fé judaica, ao denunciar alunos da Universidade Metropolitana das Ciências da Educação (UMCE) por reivindicarem “a demissão de professores judeus que ‘transgredem o nosso espaço universitário’”. Goebbels não poderia ter dito melhor.
Artzyeli reforça o estereótipo da hegemonia sionista, sequestrando todo o judaísmo: “Como ser abertamente antissemita pode causar um ligeiro desconforto, em vez de os chamarem de ‘judeus’, chamam-nos de ‘sionistas’. O sionismo é o direito à autodeterminação do povo judeu, que os estudantes negam em sua carta, embora ainda não tenham sugerido uma solução final aos judeus”. Diante dos crimes de guerra e da constante violação do direito internacional, o emissário israelense cumpriu seu papel, ao retomar, mais uma vez, a alegação de “antissemitismo”, para justificar o massacre a céu aberto financiado pelo Tesouro dos Estados Unidos.
A posição dos palestinos no Chile
No Chile constitui a mais potente e volumosa comunidade palestina da América Latina, com maioria absoluta composta de cristãos do oriente — a imigração é concomitante à presença sírio-libanesa na Argentina e à maioria maronita libanesa no Brasil. Ainda assim, tamanha comunidade tem dificuldades em se posicionar de forma mais enfática a favor da libertação da Palestina. De todo modo, o gesto do presidente Boric representa uma importante inflexão em potencial, diante do lobby sionista e da ação de propaganda dos grupos de mídia.
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A antiga Federação Palestina do Chile, autodenominada Comunidad Palestina de Chile, prontamente se manifestou elogiando a posição do presidente:
Sob muitos aplausos, o presidente Gabriel Boric anunciou a adesão do Chile à queixa da África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). Agradecemos ao Chile por este anúncio e por manter ao longo dos anos uma posição de acordo com a legalidade internacional e de apoio às reivindicações legítimas da Palestina.
Logo na sequência, acrescentou em tom sóbrio, porém contundente:
A Comunidade Palestina do Chile expressa seu mais profundo agradecimento ao governo do Chile por seu respaldo à reivindicação apresentada pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça. Esta ação reflete de maneira exemplar a coerência política do Estado chileno, fundamentada no cumprimento e respeito aos direitos humanos e ao direito humanitário internacional.
Uma estranha “coincidência”
A justiça chilena ordenou nesta segunda-feira (3) a prisão preventiva por supostos crimes de corrupção de Daniel Jadue, ex-candidato presidencial e uma das principais figuras do Partido Comunista do Chile — partido que compõe a coligação governamental. Jadue, prefeito do município de Recoleta, no norte de Santiago, foi acusado de suborno, crime de responsabilidade e fraude fiscal na gestão das chamadas “Farmácias Populares” — iniciativa pública promovida como competição contra as cadeias comerciais de venda de medicamentos.
A juíza Paulina Moya emitiu a prisão preventiva após avaliar que a liberdade de Jadue seria “perigosa para a segurança da sociedade”, em linha com o solicitado pelo Ministério Público. A defesa do ex-prefeito, que deve recorrer da decisão, sustenta que o caso se enquadra numa perseguição política. O próprio Jadue declarou no Twitter: “Me julgam por nossa gestão transformadora. Não tenho um único peso no bolso, mas eles me castigam. Apelaremos contra esta medida desproporcional!”
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Daniel Jadue, além de militante, sociólogo e arquiteto e ex-candidato a presidente, é de origem palestina e um defensor de primeira hora da libertação da Grande Cananeia contra os invasores europeus. A iniciativa das Farmácias Populares é muito positiva para minorar preços e atender a população mais carente, sobretudo se tratando de um sistema de saúde ainda herdeiro do arranjo posterior à ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Sua iniciativa também entra em choque contra outras cadeias de distribuição — no caso, que se propõem a lucrar com as doenças do povo.
As datas são “surpreendentemente” próximas. O anúncio de Boric de que o Chile iria aderir à denúncia sul-africana em Haia se deu no sábado, 1° de junho. Já a prisão aparentemente abusiva deste eminente político árabe-chileno se realizou na segunda-feira, dia 4 de junho. Quem sabe, não são somente uma “coincidência”. A luta pela libertação da Palestina se torna — definitivamente — parte da conjuntura chilena.
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