Guerra expulsa população do Saara Ocidental, refugiados insistem no retorno

Na estreita faixa do Saara Ocidental sob controle da Frente Polisário, o zunido constante de drones é um fato enlouquecedor da vida.

Sidate Side Bahia e Naim Ahmed Salm Ibarki se lembram dos ruídos daquele dia fatídico de 2021. Um cessar-fogo de décadas e décadas entre a Frente Polisário — movimento saarauí de libertação nacional — e o Marrocos implodiu em novembro de 2020. Dos céus, ambos ouviram os drones que sobrevoavam seu pequeno povoado.

Pegaram tudo que puderam, pularam dentro de um carro e atravessaram apressadamente a fronteira com a Argélia, para se juntar às centenas de milhares de saarauís que vivem no exílio. Vivem agora no campo de refugiados de Ausserd, com parentes e inúmeros outros expulsos dos “territórios libertados”, como os saarauís pró-independência chamam os 20% do Saara Ocidental que não recaem atualmente sob controle do Marrocos.

Sua casa está amontoada com as roupas que conseguiram levar durante a fuga. A maioria de seus pertences, no entanto, inclusive animais, ficou para trás.

“O Marrocos não tem poder nenhum, são apenas drones”, comentou Bahia à rede Middle East Eye (MEE), do campo de refugiados. “Se lutassem conosco apenas com kalashnikovs, sabem bem o que faríamos. Sabem o que conseguimos fazer no passado. Sabem que não temos medo”.

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Ambos lutaram ao lado da Frente Polisário: primeiro, contra a Espanha durante os 92 anos de gestão colonial imposta a sua terra; então, contra o Marrocos e a Mauritânia, quando seus vizinhos avançaram contra os espólios da metrópole espanhola em 1976.

Como parte do movimento nacional de resistência, ajudaram a obter o controle, com nada mais que veículos e kalashnikovs, como dizem, dos chamados territórios libertados. Cerca de 170 mil refugiados da guerra ainda vivem nos campos da Argélia, como Ausserd.

Um cessar-fogo instaurado em 1991 consolidou o controle marroquino sobre as terras do lado ocidental, mediante a construção de uma muralha de areia conhecida como Berma. O que está ao leste recaiu sob a administração da Frente Polisário.

A trégua foi acordada mediante as promessas de um referendo saarauí sobre sua eventual independência do Estado marroquino — jamais cumpridas. Agora, com o reconhecimento dos Estados Unidos da “soberania” do Marrocos sobre o território, Bahia e Ibarki afirmam que todo o processo foi perda de tempo e lamentam ter baixado as armas.

“Os Estados Unidos nos prometeram encontrar uma solução e nada mudou nos últimos 30 anos”, destacou Ibarki.

Bahia, hoje com 80 anos de idade, concordou e ecoou sentimentos que se tornaram cada vez mais comuns entre seus vizinhos em Ausserd, incluindo jovens que sequer se lembram da primeira onda de conflitos com o Marrocos.

“Não pedimos que nos ajudem. Se querem nos ajudar, venham, serão bem-vindos. Se não querem, pouco importa. O problema é fazer uma promessa e mentir para nós”, enfatizou Bahia. “Concordamos que deveríamos recomeçar a guerra. Seria algo ruim, mas a verdade é que não temos escolha”.

Desfile militar no 50° aniversário da Frente Polisário e da luta armada pela independência do Saara Ocidental, em Ausserd, na Argélia, 20 de maio de 2023 [Amine Chikhi/NurPhoto via Getty Images]

‘Partir amanhã’

A Frente Polisário reconheceu o fim do cessar-fogo em novembro de 2020, ao retomar sua luta armada e atingir bases marroquinas ao longo de Berma. A monarquia vizinha também atacou os territórios libertados, sobretudo com drones.

A insegurança levou milhares a fugir à Mauritânia ou aos campos na Argélia, administrados pela Frente Polisário sob a égide de Argel.

Segundo Mariam Salek Hammada, governadora do campo de Ausserd, cerca de quatro mil pessoas chegaram ao campo desde 2020. Antes dos confrontos, entre 30 e 40 mil pessoas viviam nos territórios libertados, uma região árida menor do tamanho da Grécia.

A onda de deslocamento coincidiu com o pico da pandemia de coronavírus, somada a uma camada extra de dificuldades institucionais para absorver tamanho êxodo a um cenário já bastante escasso, tomado por blecautes, falta de saneamento e mínima infraestrutura no setor de saúde.

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Aqueles que vivem ali não se deixam levar por quaisquer afeto ou romantismo em relação aos campos. Novos prédios emergem da areia, feitos de concreto, em franco contraste às tendas e habitações de barro usadas há décadas. Ainda assim, insistem os moradores, não há qualquer senso de permanência. Há, sim, uma crença prevalente de que suas condições de vida são meramente transitórias e que todos voltarão, um dia, ao Saara Ocidental. Até mesmo aqueles que nunca viram suas terras, sentem saudades.

Hammada reiterou ao Middle East Eye que simplesmente não há recursos para estabelecer um novo campo para as pessoas que fogem à zona livre. Os novos refugiados, portanto, se viram forçados, cada vez mais, a se dispersarem em habitações instaladas em menos cinco campos radicados ao redor da cidade de Tindouf, no território da Argélia.

“Houve um enorme número de pessoas que veio aos territórios libertados, e não foi nada fácil”, observou Hammada. “Tiveram de fugir para salvar suas vidas. Nosso dever é apenas acolhê-los, todos os saarauís, não importa de onde venham”.

Conforme seu relato, muitos dos refugiados são “traumatizados” pelo êxodo e sua equipe se vê obrigada a concentrar esforços em matérias de saúde, física e mental, e devolver as crianças às salas de aula.

A população dos campos é maior do que nunca, um revés ao movimento nacional que luta há décadas por seu direito de retorno.

Ainda assim, Hammada rechaça qualquer sugestão de que os refugiados saarauís estejam firmando raízes em sua nova casa ou que a construção de habitações, com a infraestrutura ligeiramente mais permanente e um novo influxo de pessoas, sugira que os habitantes do campo vieram para ficar.

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“Absolutamente o oposto”, acrescentou. “É um trabalho individual, de sobrevivência … Se olharmos mais de perto, veremos que os prédios não estão um atrás do outro, que não há ordenação urbana. Tudo que fizemos, fizemos pensando em partir amanhã”.

‘Ninguém acredita: a Terra é nossa’

Para os jovens que cresceram nos campos de refugiados, e que viram o sucessivo fracasso de todas as soluções políticas e não-violentas, a luta armada parece atraente.

Na cabeça de muitos deles, os desertos amplos e vazios do sudoeste da Argélia são apenas um purgatório que pouco ou nada lhes proporciona. Sua terra, controlada pelo Marrocos, repousando no litoral atlântico, rica em recursos naturais — incluindo valiosíssimas minas de fosfato —, é motivo de esperanças.

Mant Agulha, sobrinha-neta de Sidate Side Bahia, tem lágrimas nos olhos ao falar do Saara Ocidental, muito embora, aos 19 anos, jamais tenha visto o país.

“Temos muita saudade de nossa terra. É muito difícil nascer em um campo de refugiados, crescer e ouvir as pessoas contando histórias da terra. ‘Tem uma praia linda, os peixes são enormes, a terra nos dá tudo’, dizem os mais velhos. E é muito difícil”, destacou Agulha, ao reforçar os vínculos geracionais da terra. “Ninguém acredita, mas a Terra é nossa”.

Crianças saarauís assistem desfile em comemoração ao 50° aniversário da Frente Polisário e da luta armada por independência, em Ausserd, na Argélia, 20 de maio de 2023 [Stringer/Agência Anadolu via Getty Images]

Hammada corroborou o fato de que as autoridades do campo têm de trabalhar dia e noite para tentar evitar que os mais jovens pulem de cabeça na luta armada. Hammada reiterou que há, sim, uma zona de treinamento àqueles que desejam pegar em armas, mas apenas a partir dos 20 anos de idade e com pleno conhecimento de causa.

“O maior problema que enfrentamos desde que acabou o cessar-fogo é convencer os mais jovens que não é hora, que não eles não têm, necessariamente, de lutar”, acrescentou, ao insistir que é preciso que, primeiro, concluam sua educação.

“E mesmo que decidam lutar, não dizemos: vão lá e morram”.

Uma luta esquecida?

Oficiais da Frente Polisário insistem não ter qualquer desejo de travar uma guerra somente pela guerra, mas argumentam que a responsabilidade por qualquer violência recai sobre a potência ocupante — isto é, o Marrocos.

Saarauís comuns são menos políticos. Para eles, o mundo se esqueceu de suas lutas e seus direitos e despejou seu apoio sobre a monarquia, salvo a Argélia.

No último mês, a França anunciou sua participação em obras para instalar uma nova rede de energia de três gigawatts, entre a cidade marroquina de Casablanca e Dakhla, no Saara Ocidental. Paris sugeriu ainda apoiar o plano de autonomia proposto pelo Marrocos, que alega conceder nominalmente algum grau de governança aos saarauís, porém firmemente rejeitado pela população nativa.

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Como se não bastasse, o governo dos Estados Unidos do ex-presidente Donald Trump, em 2020, concordou em reconhecer a “soberania” marroquina sobre o Saara Ocidental como parte de um escambo para que o reino árabe normalizasse laços com o Estado colonial de Israel. Apesar de algum queixume democrata na ocasião, o sucessor de Trump, Joe Biden jamais reverteu a medida, ao manter os mapas americanos que integram o território livre ao Marrocos, em franca oposição ao restante do mundo.

Bahia denuncia o acordo com notável mágoa, ao descrevê-lo como uma “troca comercial”. Ibarki diz que os Estados Unidos “estão com quem tem poder”.

“Nos deixaram no caminho, deixaram que o mundo se esquecesse de nós”, observou.

Ambos, conforme seus familiares, não costumam participar das atividades no campo, mas negam toda e qualquer sugestão de que estejam deprimidos — muito menos apáticos ou indiferentes perante a situação.

“Não temos medo de nada. Crianças de dez anos querem ir à guerra”, explicou Bahia. “Se falar com elas, vão dizer: ‘Veja, sou um homem’”.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 5 de maio de 2024 pela rede Middle East Eye.

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