Festival de Roterdã: Rambo no Negev, Irã nunca visto e Beirute pós-apocalíptico

O circuito de festivais e premiações de cinema de 2024 foi marcado por turbulências desde 7 de outubro. Diferente das premiações insulares nos Estados Unidos e Reino Unido, onde comentar a crise em Gaza se tornou uma gafe, festivais internacionais, para os quais a discussão política é um componente essencial, não conseguiram desviar da tempestade que tomou o planeta.

Orwa Nyrabia, cidadão sírio e diretor artístico do Festival Internacional de Cinema Documental de Amsterdã (IDFA), viu-se entre a cruz e a espada em novembro por aplaudir três ativistas pró-Palestina que interromperam a abertura do evento com gritos de “Palestina livre do rio ao mar”. Os patrocinadores europeus o fizeram divulgar um pedido público de desculpas no dia seguinte.

O Festival de Cinema do Mar Vermelho da Arábia Saudita foi além, ao proibir o lenço tradicional palestino (keffiyeh) e buscar censurar qualquer manifestação de apoio a Gaza.

Mesmo Sundance, o menos político dos festivais, vivenciou um ato pró-Palestina protagonizado pela atriz Melissa Barrera, demitida da franquia Pânico (Scream) por suas denúncias às ações de Israel em Gaza.

O Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR), entretanto, jamais conseguiu se omitir dos eventos em curso.

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Fundado em 1972, a maior feira audiovisual da Holanda nasceu com foco em obras do Extremo Oriente e do Sul Global, ao tornar-se pouco a pouco a maior vitrine ao cinema experimental e às artes multimídia. O cinema do Oriente Médio é um marco em Roterdã desde seus primórdios; a edição deste ano, entre 25 de janeiro e 4 de fevereiro, não foi diferente, com a participação de obras de Irã, Israel, Palestina, Líbano e outros.

Com o demagogo xenofóbico Geert Wilders a caminho do cargo de primeiro-ministro holandês, conforme avançam as negociações de sua coalizão, o destino do festival de Roterdã parece estar em jogo. Já prejudicado por cortes orçamentários nos anos recentes, um governo de extrema-direita pode incorrer em cortes ainda maiores ao setor cultural.

Posta de lado a política local, o Oriente Médio dominou a edição deste ano. Uma vigília para as vítimas palestinas foi realizada em frente à sede do festival, em De Doelen. Diversos recipientes expressaram abertamente sua solidariedade ao povo palestino, entre os quais dois vencedores na competição de curtas-metragens. Filmes com temática palestina foram recebidos de maneira calorosa pela audiência.

Under a Blue Sun (Sob o sol azul)

Diferente dos festivais de Amsterdã e do Mar Vermelho, Roterdã passou com louvor pelo teste do Oriente Médio, ao proporcionar um espaço seguro a vozes da região e consolidar assim uma declaração tácita de apoio à Palestina por meio de sua curadoria.

O filme de destaque foi Under a Blue Sun, segundo documentário do cineasta e escritor Daniel Mann, radicado em Londres. Sua obra inaugural, Low Tide (2007), reuniu as tribulações de um israelense que deserta das Forças Armadas e vê sua vida desabar, cada vez mais desiludido com o Estado sionista.

A obra seguinte é mais ambiciosa e multifacetada. O âmago do filme é o blockbuster Rambo III de Sylvester (1988), sobre o veterano epônimo americano que se junta a combatentes afegãos para resgatar um antigo comandante durante a invasão da União Soviética. Como aponta Mann desde o princípio, o deserto do Negev, no sul do território designado Israel, serviu como cenário para o Afeganistão. O exército israelense esteve envolvido na produção, ao facilitar as filmagens e oferecer uma gama de armamentos às coreografias.

Mais caro filme da época, Rambo III serviu tanto como símbolo do poderio israelense como uma representação aberta da simbiose entre Israel e Hollywood. O que Mann revela, contudo, é uma faceta ainda mais obscurecida. O deserto de Negev — ou Naqab, conforme os palestinos — foi de fato habitado por beduínos expulsos de suas terras ancestrais em 1948, cujo direito legítimo de retorno é negado desde então. O Negev, sob ocupação israelense, dividiu-se em duas partes: um oásis quase verde destinado aos colonos e areias dilapidadas para os palestinos.

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Mann alicerça a história pouco do Negev de um ponto de vista dos diferentes descendentes das famílias nativas, incluindo Bashir Abu-Rabia, especialista em efeitos especiais que trabalhou em Rambo III, e Sabrin Abu Kaf, membro do Fórum de Coexistência e Igualdade Civil do Negev.

Por reviravoltas indignantes e reveladoras, comoventes e perspicazes, Under a Blue Sun se torna um filme sobre o mecanismo da produção e consumo de imagens.

Após a exibição, Mann me disse que obter recursos a projetos como esse é extraordinariamente difícil, sobretudo agora, que o governo israelense busca se concentrar em propaganda de guerra pós-7 de outubro. Da mesma forma, é tarefa árdua exibir o filme.

Antes de deixar nossa entrevista, destacou o diretor: “Israel não pode ser livre se a Palestina não for livre”.

Avant il n’y avait rien (Não havia nada aqui)

Mais passional — embora menos convincente — é Avant il n’y avait rien (Não havia nada aqui), terceiro filme do cineasta suíço-iraquiano-palestino Yvann Yagchi.

Dada a liberdade de escolha sobre sua identidade múltipla, Yagchi mostra ter sido criado em um ambiente secular de Genebra, com pouco apego formal à suas raízes palestinas. Porém, quando um amigo de infância abraça o sionismo, Yagchi decide investigar suas origens. O diretor segue seu amigo a um assentamento ilegal na Cisjordânia, ao documentar assim as mudanças de seu relacionamento.

Yagchi testemunha então as injustiças marcantes vivenciadas pelos palestinos todos os dias e a amizade entre ambos subitamente desmorona. O amigo deixa o projeto e Yagchi se vê com um filme inacabado em mãos, sem ter para onde ir. O que sucede é uma jornada bastante pessoal, na qual o diretor, de um único golpe, descobre sua identidade palestina e faz as pazes com o fim de uma amizade.

Avant é certamente sincero, profundamente pessoal e, de certo modo, chocante a espectadores que não estejam acostumados com as condições impostas pelos assentamentos. Contudo, não há novidade, salvo o retrato rudimentar do sofrimento palestino.

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O uso melodramático da música, da narração e de testemunhos ardentes, embora familiares, de sujeitos palestinos mascara os procedimentos com uma emotividade forçada que dilui o aspecto amplo de autenticidade do filme. A narrativa um tanto atabalhoada põe de lado questões mais incisivas de sua aventura: a formação da identidade e o peso da diáspora.

Uma das revelações intrigantes com que Yagchi se depara é o saque das bibliotecas palestinas durante a Nakba (ou “catástrofe”) e a incorporação de publicações árabes — incluindo a coleção de sua própria família — ao arquivo nacional de Israel, como uma faceta gritante do extermínio metódico da cultura e memória coletiva do povo palestino. Infelizmente, este ponto se mostra uma nota de rodapé, em um filme que tem muito a dizer, mas carece de coesão e tratamento.

Pir Pesar (O velho solteirão)

Nos anos recentes, o Festival de Roterdã se provou uma grande plataforma para descobrir novas vozes iranianas, distintas de uma estética ortodoxa de engajamento político. Neste ano, a maior revelação neste sentido foi O velho solteirão (Pir Pesar, The Old Bachelour) — segundo filme de Oktay Baraheni.

Essa claustrofóbica saga familiar se concentra em Gholam (Hassan Pourshirazi), um monstruoso pai de dois filhos odientos e imprestáveis que costumam fantasiar assassiná-lo. Os filhos tentam convencer Gholam de vender a casa da família para utilizar o dinheiro para começar uma nova vida longe do pai dominador.

No entanto, encontram um obstáculo quando Gholam se aproxima de uma sedutora divorciada (Leila Hatami), que aluga um apartamento acima da família. O que transcorre é uma luta feroz em que não há vencedor algum.

Nos últimos anos, cineastas iranianos na diáspora recorreram a sua liberdade de trabalho e vida no Ocidente para explorar assuntos que são considerados tabus no país pós-Revolução Islâmica. Com o aprofundamento da censura após os protestos contra a morte em custódia Mahsa Amini, em 2022, e proibições de viagem a cineastas, realizadores no país sofrem cada vez mais árduos obstáculos para trabalhar em um ambiente hostil, receptivo apenas a histórias positivas.

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É por isso que O velho solteirão parece milagroso. Este retrato semicomercial com algumas das maiores estrelas do país oferece uma dose de violência e vulgaridade sem a convencional moral redentora. Há drogas e álcool, xingamentos e referências a prostituição e adultério; ainda mais surpreendente, um beijo semioculto entre a mulher divorciada e o filho mais velho.

Os personagens são corruptos por definição, incluindo o primogênito ostensivamente idealista, cujo caráter o força a depender do dinheiro do pai, bêbado e abusivo. Mesmo a divorciada usa seu sex appeal para operar dentro de uma sociedade patriarcal sem jamais lutar genuinamente por sua independência. Diferente dos filmes de arte do Irã, aqui não há vítimas, não há nobreza, não há luta alguma contra a opressão. Trata-se de uma história de pessoas hediondas que ferem dia após dia umas às outras.

O Irã de Baraheni é repleto de violência e ódio reprimidos, um cenário de classe média povoado de personagens indiferentes e individualistas, que cobiçam fortuna. Não há Deus neste Irã, nem nada remotamente islâmico salvo o véu mandatório que atriz e personagem aderem em nome da exibição nos cinemas do país.

A interação entre homens e mulheres nos cafés, centros culturais e espaços públicos; os bares onde os homens dançam, bebem e enlouquecem; as livrarias esmeradas, contudo tediosas, que evidenciam a degradação cultural da sociedade em geral — um Irã que não costumamos ver.

Com 190 minutos de duração, O velho solteirão — que venceu o prêmio principal da competição de Tela Grande — é uma deliciosa novela que reafirma o valor de um cinema comercial ousado, cujos insights podem ser tão reveladores quanto seus homólogos “de arte”.

Song of All Ends (Canção de todos os fins)

Em todo lugar que passa, Song of All Ends (Canção de todos os fins) — impressionante estreia do cineasta e fotógrafo italiano Giovanni C. Lorusso — age como companheiro do documentário de mesmo tema Shadow of Beirut (Sombra de Beirute, 2023), de Stephen Gerard Kelly.

O ambiente é Chatila, campo de refugiados em Beirute transformado em cidade fantasma, com seus fantasmas do infame massacre de 1982 e as numerosas atrocidades que transcorreram a seguir. O foco deste documentário são os seis membros da família Alhaddad, cujas origens e fé jamais são reveladas. Podem ser palestinos, sírios, jordanianos, libaneses ou tudo isso junto.

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Quase sem enredo, a pouca ação deste filme ocorre no decorrer do relato. Vemos uma família que tende a suas tarefas redundantes e suas ações inconsequentes — interagindo uns com os outros, dançando, cantando, recitando poesia e lamentando seus pesares em franco silêncio. A casa está caindo aos pedaços; a vizinhança está vazia, sem vida; a existência é transiente.

Aos poucos, percebemos que a família perdeu a filha mais nova na explosão de Beirute de 2020 — um evento que soma uma nova camada de angústia a um filme cuja tecitura se constrói com um ar particular de obsolescência.

Parte meditação sobre o luto; parte olhar cru e contundente sobre os refugiados marginalizados no Líbano; parte obituário de um cenário e de uma vida à margem da extinção, Canção de todos os fins é um registro desafiador de pessoas que escolhem persistir adiante diante de revesses de escala colossal. Acontece de ser também um dos documentos visualmente mais marcantes da vida árabe jamais impressos na tela.

A música emerge como única fuga dessa família, seja a canção árabe clássica recitada pelo pai, que representa uma relíquia do passado perdido e mais gentil, seja a música contemporâneo do Egito, que sobressai como meio solitário de um escapismo livre.

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Lorusso filma seus personagens em um monótono preto e branco, ao transpor sua dor indizível, seus traumas, a uma série de planos fixos que se unem por uma beleza dolente. O resultado é semelhante à obra do diretor português Pedro Costa, que recorreu a uma estética análoga para registrar a vida dos imigrantes nas favelas de Fontainhas. Costa foi criticado por “glamourizar” a pobreza, como uma espécie de verniz de uma realidade terrível. O que Costa e, logo, Lorusso de fato fazem, no entanto, é garantir a esses personagens invisíveis uma iconografia que não pode ser vista a olho nu, ao tratá-los com dignidade e reverência que costumam lhe negar.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 14 de fevereiro de 2024

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