Ao longo da próxima semana, muçulmanos de todo o mundo embarcarão em sua peregrinação anual do Hajj, à cidade de Meca, na Arábia Saudita. Trata-se de um dever religioso a todos que podem realizar a jornada — isto é, que possuem condições de saúde ou financeiras para fazê-la ao menos uma vez na vida.
Aqui neste artigo, respondemos algumas perguntas sobre a história e os rituais por trás da mais importante peregrinação do Islã.
Quando é o Hajj?
O Hajj ocorre todo ano em uma série de dias do mês de Dhu al-Hijjah, décimo segundo e último mês do calendário lunar adotado pelo Islã. Como o calendário lunar é 11 dias mais curto do que o calendário gregoriano, a data gregoriana para o Hajj muda todo ano.
A jornada, portanto, ocorre em diferentes meses e mesmo estações.
Neste ano, o Hajj começa nesta sexta-feira, 14 de junho.
Como os muçulmanos realizam o Hajj?
A peregrinação islâmica acontece a diversas localidades sagradas na Arábia Saudita.
Tradicionalmente, tem início em Meca, onde os peregrinos participam também da peregrinação anual da Umrah. Esta consiste no tawaf, ou a enorme procissão em torno da Caaba, em sentido anti-horário, sete vezes, além da caminhada entre as colinas de Safa e Marwa.
Os peregrinos então passam o dia orando no vale de Mina, antes de seguir a Arafat, cerca de 20 km a leste de Meca.
Em seguida, os peregrinos passam todo o dia perto de uma colina conhecida Monte de Arafat — ou Monte da Misericórdia —, onde o Profeta Muhammad emitiu seu último sermão. O Dia de Arafat é considerado um dia importantíssimo para obter perdão.
Os peregrinos passam a noite em Muzdalifa, entre Arafat e Mina, onde oram e reúnem pedras. As pedras são usadas no rito simbólico de apedrejar o diabo, no dia seguinte. Três pilares — um pequeno, outro médio, outro grande — são apedrejados pelos peregrinos em Mina, onde, diz a tradição, o diabo tentou persuadir o Profeta Ibrahim (Abraão) a desacatar os mandamentos de Deus.
Após o ritual, um animal é sacrificado para marcar o primeiro dia do Eid al-Adha, quando os fiéis muçulmanos comemoram o sacrifício do Profeta Ibrahim (Abraão) em respeito a Deus.
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Os peregrinos do Hajj então cortam seus cabelos, em sinal de renovação. Os homens costumam raspar os cabelos ou cortá-los bem rente, enquanto as mulheres costumam cortar uma mecha.
Os peregrinos concluem o Hajj ao retornar a Meca para o último tawaf. Embora não seja parte do Hajj propriamente, muitos fiéis encerram a peregrinação com uma visita à cidade sagrada de Medina, onde o Profeta foi sepultado.
O que vestem os peregrinos?
Todos os peregrinos permanecem em um estado de espiritualidade conhecido como ihram, ao longo da realização do Hajj. Isto inclui vestes simples: para os homens, somente duas peças em branco, de uma túnica sem costuras; as mulheres não têm restrição de cor, mas são encorajadas a utilizar vestimentas não elaboradas.
O ihram segue o preceito de eliminar as diferenças entre as pessoas com base em suas riquezas materiais, dado que todos são iguais perante Deus, não importa classe, nacionalidade ou etnia, segundo a doutrina do Profeta Muhammad.
Notavelmente, o ativista antirracista Malcolm X enxergou a experiência de ver muçulmanos das mais diversas origens interagindo com igualdade, sem qualquer discriminação, durante os ritos do Hajj como um momento transformador.
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Outros aspectos do ihram pedem que se espere para cortar o cabelo ou as unhas, e que se evite o uso de perfumes e relações sexuais. O ihram se encerra justamente com o corte de cabelo nos últimos dias da peregrinação.
Como o Hajj começou?
Embora os rituais tenham início na época do Profeta, as origens de tamanha peregrinação têm mais de quatro mil anos.
Em torno de 2000 a.C., muçulmanos creem que Ibrahim (Abraão) recebeu ordens de Deus para deixar sua esposa Hajera e seu filho pequeno Ishmael no deserto. Ishmail tinha sede e fome, o que fez Hajera correr entre as colinas de Safa e Marwa, para orar por sustância. De acordo com as escrituras, foi então que um anjo apareceu e criou uma fonte de água, conhecida como poço de Zamzam.
Os muçulmanos acreditam que Ibrahim logo retornou a sua família, com instruções divinas para construir um monumento — a Caaba — no local do poço, como ponto de congregação àqueles que gostariam de fortalecer sua fé.
O monumento e a descoberta de água no deserto tornaram Meca uma cidade cosmopolita. No entanto, com o tempo, a Caaba perdeu sua exclusividade monoteísta e se tornou lugar de culto para práticas consideradas pagãs.
No ano de 630, o Profeta Muhammad levou seus seguidores a Meca e Medina, pediu a remoção dos ídolos e devolveu ao local um caráter de culto a um único Deus. Dois anos depois, realizou a primeira peregrinação islâmica, deixando a seus seguidores os rituais do Hajj.
Como os peregrinos chegam lá?
Nos primeiros séculos do Islã, peregrinos se reuniam em grandes grupos em Damasco, na Síria, no Cairo, no Egito, e em Kufa, no Iraque, para viajar em caravanas a Meca.
As caravanas costumavam ser patrocinadas e organizadas por governantes muçulmanos de toda a região, que assumiam questões de logística sobre a peregrinação. O Império Otomano foi um desses ambiciosos patronos, ao fortificar longas faixas do deserto para as rotas do Hajj, a fim de proteger as caravanas de eventuais assaltos.
A jornada era realizada sobretudo em camelos, levando entre dois e três meses em média. Com o tempo, a enorme interação humana de diferentes partes do mundo, com milhares de pessoas, tornou a jornada do Hajj um centro crucial de comércio e desenvolvimento econômico.
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Nos séculos mais recentes, realizar o Hajj se tornou um evento de massa disponível também às classes mais baixas, com o advento de navios a vapor e ferrovias. Peregrinos costumam lotar as embarcações à Arábia com tickets mais baratos — tema do livro Lorde Jim, de 1900, do escritor Joseph Conrad.
Desde a Segunda Guerra Mundial, o número de peregrinos aumentou de maneira drástica — de milhares a milhões —, graças ao acesso por aviões.
Houve incidentes ou interrupções?
Ao longo da história, o Hajj foi impactado por guerras, pragas e tragédias.
Uma das primeiras e mais graves interrupções se deu em 930, quando os carmatas — um nicho hoje extinto do xiismo ismaelita — invadiram Meca. Uma vez poderosos, ao governar boa parte do leste da Arábia, contam os relatos, os carmatas roubaram a pedra da Caaba e profanaram o poço de Zamzam, ao alegar que o Hajj seria um ritual pagão.
A peregrinação foi então interrompida por duas décadas, até o califado abássida pagar um bom valor em resgate pela pedra da Caaba.
Questões políticas também interromperam o Hajj. Em 983, disputas entre os califas abássida, da Síria e do Iraque, e fatímida, do Egito, impediram a peregrinação por oito anos.
Em 1987, confrontos entre peregrinos xiitas, inspirados pela Revolução Iraniana, e a segurança saudita, deixaram 400 mortos — em maioria, iranianos.
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Epidemias também causaram tragédias e interrupções.
Uma praga da Índia chegou a Meca em 1831 e matou três quartos dos peregrinos. Uma série de epidemias nas três décadas seguintes suspenderam os rituais outras três vezes, como em 1846, devido à cólera, que matou 15 mil pessoas na cidade sagrada.
Nos anos mais recentes, incidentes envolveram superlotação. O mais grave foi em 1990, quando 1.400 pessoas morreram pisoteadas em um túnel de acesso a Meca, e em 2015, com a morte similar de duas mil pessoas.
Casos como esses, no entanto, ainda são exceção, à medida que continua a peregrinação como manifestação global da fé islâmica.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 10 de junho de 2024.