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Por que paquistaneses na diáspora voltam para a casa para realizar o Hajj?

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Muçulmanos de todo o mundo circundam a Caaba, em Meca, na Arábia Saudita, para a peregrinação do Hajj, em 7 de junho de 2024 [Lokman Akkaya/Agência Anadolu]

Sentado sob um toldo branco incrustado de luzes, em uma sessão de treinamento para o Hajj, em Londres, Shakil Ahsan ouve pacientemente o imã enquanto ele explica os ritos da peregrinação em urdu.

O funcionário público de 42 anos de idade sonha em fazer a peregrinação do Hajj há anos. Agora, suas esperanças de sentar-se sob um toldo em Mina, na Arábia Saudita, parecem prestes a se concretizar.

A pandemia e a impossibilidade de reservar o Hajj através das novas vias criadas pela Arábia Saudita atrasaram esse sonho para ele e sua esposa por alguns anos. Ahsan decidiu então recorrer a uma rota alternativa, em vez de usar a tramitação oficial designada para cidadãos britânicos. Desta vez, está usando um passaporte paquistanês.

“Nós tentamos ir pela rota oficial do Nusuk, mas o site continuava travando, e quando conseguíamos acesso, a reserva já estava esgotada ou indisponível”, disse Ahsan, referindo-se ao novo portal de inscrição online para o Hajj que a Arábia Saudita implementou para os muçulmanos no Ocidente.

Ahsan é um dos muitos britânicos paquistaneses que estão utilizando sua segunda nacionalidade para contornar o sistema burocrático e difícil de navegar de inscrição para o Hajj, que foi implementado em 2022 pela Arábia Saudita para o mundo ocidental.

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“Todos os dias nós olhávamos [no Nusuk], de manhã à noite, até mesmo durante o almoço no trabalho e assim que eu terminava o expediente”, recordou Ahsan. “Eu me levantava de manhã e tanto eu quanto minha esposa tentávamos procurar pacotes e continuava aparecendo ‘pacotes lotados’, ‘pacotes lotados’. Não havia como contactá-los diretamente.”

Após esperar dias a fio, com falhas no site e poucas opções de pacotes, Ahsan ouviu falar sobre a possibilidade de se inscrever para o Hajj como cidadão paquistanês.

Ahsan e outros peregrinos se inscreveram para o Hajj através de agências de viagem paquistanesas usando seus passaportes paquistaneses e conseguiram pacotes com muito mais facilidade, além de um preço significativamente mais barato do que seus concidadãos que se inscreveram como cidadãos britânicos ou americanos.

Esse método alternativo de se inscrever para o Hajj reacendeu as esperanças de muitos paquistaneses vivendo no Ocidente, que temiam não poder mais realizar o Hajj devido ao novo sistema implementado nos Estados Unidos, Europa e outras partes do mundo.

“É como um sonho se tornando realidade”, observou Sumara Athtar, outra cidadã britânica paquistanesa que consolidou seus planos de viagem para o Hajj a partir do Paquistão.

Esta nova onda de cidadãos paquistaneses com dupla nacionalidade, vivendo no exterior e utilizando sua cidadania paquistanesa, também levanta várias questões e oportunidades para o próprio Paquistão, que enfrenta uma de suas piores crises financeiras da história e precisa urgentemente de uma injeção de capital.

Aplicação ao Hajj

Recentemente, a Arábia Saudita introduziu uma nova regra que exige que viajantes dos países ocidentais reservem suas visitas a Meca através de um site do governo, em vez de agências de viagens, que historicamente eram a principal forma de obter um pacote de peregrinação.

Peregrinação do Hajj, em Meca, Arábia Saudita, 2 de agosto de 2019 [Halil Sagirkaya/Agência Anadolu]

Peregrinação do Hajj, em Meca, Arábia Saudita, 2 de agosto de 2019 [Halil Sagirkaya/Agência Anadolu]

Muçulmanos no Ocidente foram então apresentados ao Nusuk, um portal projetado pelo Ministério do Hajj e Umrah da Arábia Saudita para gerenciar os pacotes. Sob este novo sistema, a cota de vagas para o Hajj atribuída ao Reino Unido para a peregrinação foi reduzida de aproximadamente 25 mil pessoas para cerca de 3.600.

Mas cidadãos paquistaneses nos Estados Unidos, Reino Unido e outras partes da Europa podem contornar esse novo sistema reservando um pacote diretamente através de uma agência licenciada no Paquistão.

No Paquistão, a cota nacional de aproximadamente 180 mil vagas para o Hajj é dividida igualmente entre pacotes patrocinados pelo governo e pacotes privados. Os pacotes privados são distribuídos entre mais de 800 agências de viagens licenciadas no país.

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Qualquer cidadão paquistanês pode se inscrever para esses pacotes, independentemente de morar no país ou no exterior.

“Se alguém tem um passaporte paquistanês e se inscreve no Paquistão, é tratado como um paquistanês”, explicou Junaid (pseudônimo), uma fonte com conhecimento sobre as operações do Hajj do Paquistão, que falou sob condição de anonimato.

O Paquistão é um país que permite a dupla cidadania, e qualquer pessoa cujos pais ou avós nasceram em território paquistanês pode solicitar um passaporte e uma carteira de identidade nacional, mesmo que nunca tenha estado no país.

Junaid observou que, para cidadãos estrangeiros que se inscrevem através do Paquistão, há uma série de fatores que tornam essa uma opção mais atraente. “Você pode viajar ao Paquistão algumas semanas antes, passar um tempo com sua família e depois ir para o Hajj. É uma consideração de custo e uma consideração familiar”.

Dado que qualquer pessoa com nacionalidade e passaporte paquistanês pode se inscrever para o Hajj no país, isso significa que paquistaneses não apenas no Reino Unido ou nos Estados Unidos, mas em qualquer lugar fora do Paquistão, podem se inscrever — incluindo aqueles em outros países ocidentais que agora têm de lidar com o intrincado portal Nusuk.

E mesmo que façam sua solicitação via Paquistão, podem viajar diretamente para a Arábia Saudita — uma camada extraordinária e inesperada de conveniência.

Um dos “piores” passaportes do mundo

Aqueles que falaram com o Middle East Eye sobre realizar o Hajj por meio de sua nacionalidade paquistanesa nunca imaginaram em toda a sua vida que usariam de fato seu passaporte paquistanês — classificado como o quarto passaporte mais fraco do mundo.

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“Eu me considero meio paquistanesa de qualquer maneira, porque nasci lá e fiquei lá até os 11 anos”, comentou Athtar, que está levando seu filho de 21 anos com ela para a peregrinação islâmica. “Eu sei ler urdu, embora tenha esquecido como escrever. Mas no que diz respeito aos meus filhos, não — eu nunca imaginei que precisaria fazer o passaporte deles”.

Usar um segundo passaporte foi, no entanto, uma preocupação a Ahsan, que assistiu com choque e apreensão quando Shamima Begum, uma cidadã britânica, teve seu documento de identidade britânico revogado pelo governo e não pôde voltar ao país.

Begum está atualmente no nordeste da Síria, detida em um campo para as famílias de supostos membro do Estado Islâmico (Daesh), assim como pessoas que fugiram dos territórios controlados pelo grupo terroristas, após serem derrotadas por forças curdas.

“Hesitei porque estava pensando ‘o que significa ter dupla nacionalidade’? É esse tipo de coisa para mim. Não houve apoio de ninguém realmente aqui”, lamentou Ahsan.

Traumas da plataforma

Para Aymen e Khadija Toor, um casal paquistanês-americano radicado nos Estados Unidos, foi a péssima reputação da plataforma e os relatos horríveis subsequentes que os dissuadiu de sequer tentar passar pelo processo de inscrição no Nusuk para o Hajj. Ambos decidiram, no ano passado, que se inscreveriam através de uma agência paquistanesa.

Era a primeira vez que planejavam ir ao Hajj, um sonho de vida, e não queriam se preocupar com problemas de última hora ou com o pior cenário possível de serem excluídos completamente da inscrição para a peregrinação pelo sistema Nusuk.

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“Quando o sistema de cotas foi introduzido, ficamos sabendo de várias histórias ruins sobre como o site opera, como é difícil de navegar, como você não sabe o que está acontecendo. De repente, de última hora você descobre que, ok, não deu certo”, relatou Aymen. “Então, apareceu essa opção de irmos pelo nosso país de origem, o Paquistão, desde que tivéssemos os passaportes. E imediatamente optamos por essa opção.”

Além da facilidade com que conseguiram um pacote de Hajj através do Paquistão, essa rota tem um bônus, pois permite que os pais de Aymen, atualmente no Paquistão, se juntem a eles no mesmo grupo para a peregrinação. “Estou levando meus pais também. Eu só queria não sofrer de ansiedade na última hora”, disse Aymen.

Para ele, reservar o Hajj dessa forma foi semelhante à forma como os peregrinos se inscreviam para o Hajj nos Estados Unidos antes da implementação do sistema de cotas.

“Isso tudo está acontecendo por causa da questão das cotas, e as pessoas querem mais segurança”, disse Aymen. “E esses provedores, nós costumávamos tê-los nos Estados Unidos, mas agora acabou. Então, as pessoas meio que estão se virando por conta própria.”

Aymen, de 50 anos, sócio-gerente de uma empresa de consultoria, e Khadija, pediatra de 45 anos, falaram com o Middle East Eye já a caminho do aeroporto.

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O casal gostou da experiência de se inscrever através do Paquistão, o que, segundo eles, permitiu que evitassem estresse e preocupação que conhecidos vivenciaram ao se inscrever pelos Estados Unidos. Puderam se concentrar apenas na peregrinação, que por si só será uma experiência exaustiva, mas recompensadora.

“Há uma parte mental nisso, certo? Fisicamente, estamos prontos — temos todas as vitaminas e medicamentos. Agora só precisamos nos concentrar na parte mental,” reiterou Khadija.

O futuro do Hajj no Paquistão

Enquanto paquistaneses na diáspora aproveitam a possibilidade de garantir uma vaga no Hajj graças à sua dupla nacionalidade, seu país de origem também observa o fenômeno.

Isso apresenta tanto oportunidades potenciais para o país que o capitalize sobre, como cria alguns problemas a longo prazo, pois agora pode haver mais competição quando se trata de se inscrever para a peregrinação a partir do Paquistão.

“Seria uma excelente ideia que uma agência do Hajj oferecesse um pacote adicional, para que viajantes fizessem um tour pelo Paquistão”, sugeriu Junaid. “Quando lidamos com o setor privado, tem bastante flexibilidade. Alguém pode querer fazer alguns procedimentos médicos e, a partir daí, seguir para a peregrinação”.

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Embora existam oportunidades para expandir o turismo via Hajj, o Paquistão também sofre uma grande crise financeira que resultou na desvalorização da moeda e carestia, tornando a peregrinação cada vez mais inacessível para o cidadão comum. O Paquistão enfrenta o risco de inadimplência devido a sua enorme dívida externa. As reservas estrangeiras caíram para aproximadamente US$ 4 bilhões, valor quase igual a um mês de importações. A moeda desabou 20% em relação ao dólar e o custo do Hajj aumentou drasticamente.

Junaid citou a inflação no país, juntamente com a acentuada desvalorização da rupia paquistanesa, como motivo para a queda nas inscrições para o Hajj.

“Será a primeira vez que o Paquistão entregará parte de sua cota”, reconheceu Junaid. “Normalmente, sob o sistema do governo, o Paquistão teria o dobro de reservas em relação ao número de vagas disponíveis”.

Em maio de 2023, o Paquistão anunciou a entrega de oito mil vagas para a peregrinação, um sinal do dilema financeiro que assola o país. Em março, confirmou que reservaria metade de sua cota a peregrinos que pagassem em dólares americanos, no intuito de atrair mais capital estrangeiro às reservas nacionais. Além disso, aumentou a cota do Hajj a cidadãos paquistaneses na diáspora, para que realizem a viagem através do governo.

Junaid notou dificuldade também a paquistaneses que vivem no Ocidente, dado o fato de que o país não conseguiu atender à sua cota pela primeira vez na história, no ano de 2023.

Peregrinos muçulmanos realizam o ritual de ‘apedrejamento do diabo’ que marca o início do feriado de Eid al-Adha no vale de Mina, perto da cidade sagrada de Meca, no oeste da Arábia Saudita, em 9 de julho de 2022 [Delil Souleiman/AFP via Getty Images]

“Há uma grande diferença de custo, é muito mais barato ir do Paquistão. São cidadãos com dupla nacionalidade, então são nossos cidadãos também,” enfatizou Junaid.

Segundo seu relato, o custo de um pacote governamental era de cerca de 250.000 rúpias paquistanesas em 2016, e agora é de cerca de 1,1 milhão de rúpias — ou US$ 4.000 —, o que eleva o preço para além do alcance do cidadão comum.

Para um americano, porém, US$ 4.000 é muito mais barato do que os pacotes disponíveis no Nusuk, muitos dos quais custam mais de US$ 10.000.

E nos próximos anos, a desigualdade financeira entre um paquistanês americano ou britânico e seu concidadão que vive no Paquistão deve continuar a aumentar, trazendo ainda mais preocupações sobre quem poderá se inscrever para a peregrinação islâmica.

“Todos querem ir ao Hajj. As finanças são o principal obstáculo”, concluiu Junaid.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 22 de junho de 2023.

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