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O que disse ou não disse Che Guevara

Silhueta de Che Guevara no Ministério do Interior de Cuba, na capital Havana, em 29 de agosto de 2023 [Mark Scott Johnson/Wikimedia/Creative Commons 2.0]

“Só sei que nada sei” é a máxima filosófica mais popular de todas, embora muitos não saibam que esta é atribuída ao filósofo Sócrates. No entanto, nem Platão, nem Xenofonte, muito menos Aristófanes, que registraram os diálogos e as crônicas de Sócrates, atribuíram a ele, em seus escritos, tal máxima. “Só sei que nada sei” é uma paráfrase dos motivos que levaram Sócrates a seguir o caminho em busca de entender o que as pessoas sabiam sobre os mais diversos temas relacionados ao plano material. Mas ter dito ou não exatamente essas palavras não a torna menos dele; pelo contrário, elas servem para ilustrar suas ideias, bem ao estilo que Hesíodo e Homero — ambas figuras cuja existência é questionada pela historiografia — fizeram com histórias míticas e mitológicas de deuses e heróis para ensinar valores éticos e morais para a humanidade.

Mas o que a Grécia antiga tem a ver com Che Guevara e suas frases? Esta semana publiquei, em memória ao aniversário de Che Guevara, em 14 de junho, a frase “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” e muitos questionaram o fato de Che ter dito ou não a frase. Veja bem, Sócrates ou Che não são os únicos a serem questionados por suas autorias. A Mahatma Gandhi é atribuída a frase “antes de mudar o mundo, mude a si mesmo”, mas essa frase foi escrita na verdade por Tolstói, escritor russo a quem o indiano tanto admirava e com quem até se relacionou por meio de cartas. Mas antes de Tolstói, essa frase, de forma diferente, foi dita por alguns epicuristas e antes deles, pelo próprio Jesus Cristo. Mas seria justo, pela mesma lógica de questionar a autenticidade de Che, questionar também o plágio de Gandhi, Tolstói, dos epicuristas e do próprio Jesus Cristo, afinal, Sidarta Gautama, mais conhecido como Buda, ensinou “antes de mudar o mundo, mude a si mesmo” alguns séculos antes de Jesus.

Quando estive em Cuba, em janeiro de 2024, tive o prazer de desfrutar do método cubano de incentivo à educação através de encher as prateleiras das livrarias em todo o país com livros por valores simbólicos, muito mais baratos que um pão para os cubanos. Com isso, adquiri, dentre as dezenas que trouxe, o livro do autor e historiador Julio M. Llanes, Che: entre la literatura y la vida. Neste livro, o autor passa por todos os autores de preferência de Che, tais como: Neruda, London, Verne, Cervantes, Goethe, Tolstói, Dostoiévski, Gorki, Marx, Engels, Lenin, Sartre, Hemingway, dentre outras dezenas. O que Llanes nos ensina é que todos esses autores moldaram o pensamento, o caráter e até mesmo a persona de Che Guevara, e que era costume do guerrilheiro citar, em certas ocasiões, algumas das frases que lhe marcaram momentos específicos — como quando levou um tiro no pescoço ao desembarcar em Cuba e se recostou em uma árvore acreditando que morreria ali, como no conto de London.

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Por sorte, a vida de Ernesto Guevara me influenciou em muitas coisas: na paixão pela viagem mochileira, pelo senso de justiça e pela luta socialista, mas, acima de tudo, pela paixão pela literatura. Muitos dos seus autores preferidos também são os meus, então poderia citar dezenas de ocasiões em que as falas do eterno comandante se referem a certos autores, como a sua última frase, atribuída a ele no momento de sua execução, “prefiro morrer de pé a viver ajoelhado”. Ao longo da história, atribuíram essa frase a tantos personagens, mas na verdade ela consta em For Whom the Bell Tolls (Por Quem os Sinos Dobram), de Ernest Hemingway. Mas nem por isso devemos deixar de atribuí-la também a Che.

No último discurso do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, antes de se entregar à “injustiça” e ser preso, ele mencionou duas frases muito simbólicas de Che. Ouvir tais frases me fez entender que Lula leu os escritos de Che, e que de certa forma, no próprio Lula habita um pouco de Che, assim como em Che habitam um pouco de Neruda, London, Verne, Cervantes, Goethe, Tolstói, Dostoiévski, Gorki, Marx, Engels, Lenin, Sartre, Hemingway, entre outras dezenas.

Che Guevara, assim como todos os outros nomes que entraram para a eternidade, se tornou um dos deuses de Hesíodo ou heróis de Homero. Em sua vida, reside algo de mítico e místico que serve para nos ensinar um pouco sobre os valores éticos e morais que devemos despertar no âmago de nossa própria existência. O que disse ou não disse é mero reducionismo da fonte inesgotável de conhecimento que o comandante ainda pode nos oferecer.

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Portanto, endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura, é algo que devemos aprender a usar. Não importa se a frase saiu ou não de sua boca: foi exatamente endurecendo-se sem perder a ternura que Che viveu sua vida, e, dessa forma, aqueles que se prendem ao reducionismo deveriam aprender um pouco mais sobre quem foi Che Guevara e ler um pouco mais sobre os autores que o ajudaram a moldar o seu senso crítico e sua persona. Talvez assim tenhamos uma sociedade mais culta, mais ativa politicamente e menos reducionista.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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