A pior escolha que alguém pode enfrentar é o dilema de salvar a vida de seus entes queridos ao ter de ficar para trás, para encarar a morte sozinho. Foi essa escolha que Abeer Harkali fez para salvar seu irmão caçula, Nidhal, de ser baleado por soldados da ocupação israelense, enquanto ele tentava carregá-la a um abrigo em Gaza.
Abeer, de 30 anos de idade, e sua família estão entre os palestinos forçados a deixar suas casas no distrito de Shuja’iyya, na Cidade de Gaza, logo no início de outubro passado. Usuária de uma cadeira de rodas, Abeer somente conseguiu fugir porque seu irmão a carregou a uma escola da Agência das Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) — onde se refugiaram.
Abeer nasceu com hemiplegia, condição causada por uma lesão no sistema nervoso central ou na medula espinhal, que leva a paralisia de um lado do corpo. Desde o instante em que sua mãe descobriu a gravidez, a ocupação israelense exerceu um papel imperativo na vida de Abeer, pois foi nessa época que soldados dispararam bombas de gás à casa de sua família. A mãe sofreu de asfixia, levando à falta de oxigênio para seu bebê — causando, portanto, a deficiência.
Conheci Abeer Harkali por meio de seu ativismo como deficiente física há alguns anos. Quando teve início a agressão israelense, imediatamente busquei contactá-la. Demorou duas semanas para que a mensagem fosse entregue e então uma espera agonizante por uma resposta. Senti-me aliviada quando soube que estava viva, mas seu apelo logo partiu meu coração:
Por favor, faça algo por nós. Por favor, eu imploro. Parem o bombardeio. Estamos morendo. Pelo amor de Deus, nos ajude.
Antes do genocídio de Israel em Gaza e apesar de saber muito bem que sua vida seria diferente, Abeer escolheu manter-se ativa e colecionou hobbies e campanhas por direitos e acessibilidade. Abeer fez parte da equipe de basquetebol paralímpico de Gaza, além de karatê e tênis de mesa. Abeer foi também membro fundadora da primeira banda de dabke, dança tradicional palestina, composta por cadeirantes e se voluntariou na ong Ana Insan (“Sou humano”), especializada em direitos humanos e civis.
“Antes da guerra começar, eu vivia minha vida ao máximo, como qualquer pessoa, passando o meu tempo entre trabalho, esportes, dança, voluntariado e sair com os amigos. Graças a minha cadeira motorizada, consegui fazer tudo isso e ir a qualquer lugar sem enfrentar dificuldades ou obstáculos”, explicou Abeer. Mas tudo isso é agora um sonho distante. Desde outubro, as coisas mudaram drasticamente. “Sou agora prisioneira dessa guerra, prisioneira de minha própria dor, das minhas cicatrizes emocionais”.
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Logo na manhã de sábado, 7 de outubro, Abeer acordou com o barulho assustador de aviões de guerra e bombas israelenses. Por viverem na fronteira leste de Gaza, região que mais sofre nas reiteradas ofensivas israelenses, designada “zona de perigo”, sua família se viu obrigada a deixar para trás sua cadeira motorizada e buscar refúgio no colégio al-Falah, das Nações Unidas. “Nós ficamos na escola por um mês e meio, tomados por medo e ansiedade, sabendo que estávamos cercados por destruição e morte”, recordou Abeer. “Buscamos abrigo naquele lugar, mas todos nós sabíamos que não existia essa coisa de ‘zona segura’ na Faixa de Gaza”.
Em 16 de novembro, tropas ocupantes lançaram um foguete no pátio do colégio, ferindo o pai e o irmão de Abeer. “Deixei a sala de aula que se tornou meu ‘lar’, para encontrar meu pai jogado no chão, a parte de baixo de seu corpo completamente destruída. Mas ele ainda estava vivo; ele ainda respirava, com meu irmão, também ferido, o segurando nos braços, gritando sem parar: ‘ambulância, ambulância!’, sabendo muito bem que as forças da ocupação jamais deixariam que uma ambulância viesse para nos salvar”.
Foi bem nessa época que o exército israelense cortou todos os meios de comunicação de Gaza. Os irmãos de Abeer carregaram o corpo do pai a um colégio adjacente. “E no curto caminho até aquela outra escola, passávamos por corpos e mais corpos de crianças, mortas por um foguete que caiu em suas cabeças — um monte de crianças despedaçadas”.
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Aqueles que sobreviveram à primeira explosão, morreram de seus ferimentos. “Não havia nada que pudéssemos fazer por eles, exceto escutá-los gemer enquanto morriam”. A família passou a noite de vigília, junto ao pai, mortalmente ferido.
Minha deficiência nunca me trouxe a sensação de impotência ou desespero, mas ver pai sofrer tanto, morrer devagar diante de meus olhos, sem que eu pudesse fazer nada por ele, fez eu me sentir inútil. Ele implorava para que eu chamasse a ambulância, mas era impossível. Foi uma noite de dor, a pior noite de toda minha vida.
Com o nascer do sol, os lamentos cessaram, conforme morriam os feridos. Seu pai, no entanto, ainda estava vivo. Naquele momento, a família percebeu que teria de fugir novamente, embora soubesse que o portão da escola estava cercado por franco-atiradores israelenses, que cravaram de balas diversos meninos que tentaram deixar o complexo naquela manhã. Em desespero, sem ter o que fazer, alguns palestinos cavaram um buraco na parede nos fundos da escola, de onde tentaram escapar.
“Eu estava sem minha cadeira de rodas e a única forma de sair seria se meu irmão mais novo — Nidhal, de 23 anos — me carregasse, e foi o que ele fez, correndo comigo nos braços ao lado de muitas outras pessoas que tentavam deixar o que nos disseram ser uma ‘zona segura’”, reiterou Abeer. Mas Nidhal estava faminto devido ao cerco e ao trauma das últimas 24 horas e não teve forças para carregar a irmã. Abeer caiu de suas mãos e foi pisoteada por pessoas desesperadas que corriam para salvar suas vidas. Foi quando a jovem fraturou as costelas.
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“Não conseguia me arrastar para escapar com os outros, meu irmão não conseguia me arrastar debaixo das pessoas. Eu implorei a ele: vá embora, salve sua vida, eu aceito qualquer coisa que me aconteça”. Mas Nidhal se recusou. Reuniu forças que nem sabia que tinha para novamente erguê-la e correr, tanto quanto podia, sob as bombas que caíam do céu como uma chuva densa a seu redor.
“Foi uma jornada muito, muito longa. Minhas costelas doíam, doíam muito, mas eu não queria mostrar a Nidhal porque ele já estava chorando de medo, de desespero, por tudo que se passou conosco e sem saber se encontraríamos nossa família outra vez”.
Ambos não conseguiram seguir viagem ao sul de Gaza, sob uma saraivada de franco-atiradores. Todavia, encontraram a mãe e um irmão ferido e voltaram a Shujai’yya em busca de seu pai e de três outros irmãos. Encontraram estes, que confirmaram que o pai sangrou até morrer, sob sítio israelense, sem jamais conseguir socorro. Tiveram de enterrá-lo sob as ruínas de uma casa, que até então desconheciam.
“Estávamos em choque, um pesadelo do qual queríamos apenas despertar. Ainda assim, sequer conseguimos velar nosso pai — tomados pelo medo e pela morte”. A família decidiu, mais outra vez, tentar escapar ao sul de Gaza. “Sabíamos que estávamos a segundos da morte”. Finalmente chegaram a Deir Al-Balah, onde permanecem até hoje apesar dos bombardeios e das incursões militares dos soldados de Israel. Receberam fotos de sua casa — completamente em ruínas. Na imagem, vê-se a cadeira motorizada de Abeer — até então, sua fonte de vida.
“Vivemos em uma escola, no quarto andar, não temos roupas ou cama. Falta tudo, até mesmo o básico do básico de direitos humanos”, concluiu Abeer.
Somos corpos sem alma, vivendo em constante medo de morrer, debaixo de um bombardeio sem fim, um sofrimento sem fim, sem horizonte algum. E todos nós sabemos que podemos muito bem morrer a qualquer instante.
Abeer não é exceção — é uma entre milhões de palestinos cujas vidas foram ditadas por Israel e sua brutal ocupação, muito antes de sequer terem nascido.