O episódio “Kill Zone: Inside Gaza”, da série documental Dispatches, da rede britânica de televisão Channel 4, é um retrato sem filtros, de partir o coração, da destruição que a implacável ofensiva israelense contra Gaza impõe aos civis palestinos, em particular, mulheres e crianças. A peça audiovisual, que reúne registros capturados por 12 bravos jornalistas palestinas, em franco risco de vida para documentar o massacre, desnuda o custo humano daquilo que se revelou a mais intensa campanha de bombardeamentos do século corrente. Mais de 36 mil palestinos foram mortos desde outubro — cerca de 70% dos quais, mulheres e crianças.
A escala de devastação e morte, além do número chocante de feridos — 80 mil e ainda contando — é algo como nunca visto, confirmou o médico especializado em cirurgias reconstrutivas dr. Ghassan Abu-Sitta, que testemunho o impacto de diversos conflitos ao redor do mundo e passou 43 dias em Gaza tratando das vítimas. Abu-Sitta deixou o enclave no fim de novembro e, desde então, insiste em disseminar seu testemunho de primeira pessoa sobre os horrores infringidos pelas bombas de Israel.
“Kill Zone: Inside Gaza” — ou “Zona de morte: Dentro de Gaza”, em tradução livre — é, como diz o título, um relato detalhado do comportamento atroz e assassino das forças israelenses. Ninguém em Gaza está seguro, nem mesmo bebês abrigados em tendas da Organização das Nações Unidas (ONU). O documentário eleva ainda mais a denotação sinistra das revelações de uma reportagem da revista +972, conforme a qual Israel pôs em uso um sofisticado sistema de inteligência artificial (IA) para gerar alvos arbitrários a sua campanha. A abordagem algorítmica sobre as ações de extermínio culminou em assassinatos indiscriminados e uma mortalidade civil extremamente alta.
De fato, as baixas humanas são catastróficas, com famílias inteiras varridas do mapa e toda uma geração de crianças traumatizada.
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Médicos chegaram a cunhar um novo acrônimo para caracterizar os pacientes: WCNSF — do inglês, “crianças feridas, sem familiares sobreviventes”. Essas jovens vítimas dos massacres israelenses perderam tudo e todos. A obra nos apresenta a algumas dessas crianças que, do dia para a noite, se tornaram órfãs. Dentre os casos, está um menino, por exemplo, que perdeu toda a família imediata e ambas as pernas, para os contínuos ataques aéreos de Israel. Há ainda as irmãs Lama e Sama Badwan, que combinam suas roupas e falam com uma apavorante naturalidade sobre como amigos e vizinhos foram todos mortos. Questionados sobre a pior parte dos bombardeios, uma criança explica: “Nossos amigos morreram. Nossos parentes morreram. Muita gente que nos amava e que a gente amava acabou morrendo”.
Quem sabe, o aspecto mais aterrorizante de tamanho sofrimento seja precisamente as experiências das crianças classificadas pelos médicos sob a sigla “WCNSF”. Abu-Sitta, o cirurgião que vivenciou a crise em Gaza, lamenta: “O que será delas é algo difícil de ver e de engolir”. Até o fim de outubro, em menos de um mês de ofensiva, a ONU já havia declarado o enclave um “cemitério de crianças”, com mais de 67% dos então cinco mil mortos até então sendo mulheres e menores de idade.
A obra traça ainda a história dos irmãos gêmeos Salah e Khaled, inseparáveis em vida e reunidos tragicamente na morte, quando um ataque israelense sobre o bairro em que moravam deixou quase toda a família debaixo dos escombros. Seu irmão sobrevivente, Ali, recorda a tarefa devastadora de recuperar seus corpos e de ter de informar a irmã, gravemente ferida, Dalia, também jornalista, de tamanha perda.
Por todo o documentário, testemunhamos o medo e a tristeza de uma população que sofreu males inimagináveis.
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O espectro da limpeza étnica corre solto, com muitos palestinos expressando o pânico crescente de que a verdadeira intenção de Israel é expulsá-los por completo de Gaza. Huda é uma mãe que relata: “A guerra que estamos vivendo afeta todos nós e o fardo que carregamos em casa acaba conosco cada vez mais”. Para aqueles que sobrevivem aos bombardeios, a vida virou uma batalha diária contra a fome e a ameaça perpétua de mais e mais violência.
O filme presta homenagem à coragem de jornalistas palestinos como Hind Khoudary e Ali Jadallah, que lutaram contra as lágrimas ao tentar manter a compostura enquanto cobriam a carnificina de seu próprio povo. Em uma virada cruel do destino, a guerra os tocou pessoalmente, quando a casa da família de Jadallah foi bombardeada, matando seu pai. O último momento de causar arrepios vem com a revelação de que seu colega, Montaser al-Sawaf, foi morto em dezembro meramente por tentar mostrar ao mundo o que acontece em casa — somando aos mais de cem jornalistas palestinos mortos em pouco mais de oito meses.
Embora “Kill Zone: Inside Gaza” não mergulhe nas complexidades políticas do conflito, serve como poderoso testemunho do sofrimento humano imposto à população sitiada de Gaza, ao amplificar as vozes das vítimas inocentes, sobretudo crianças, que viveram e ainda vivem traumas e perdas incomensuráveis. Este documentário — comovente e assustador — garante que não esqueçamos suas histórias, mesmo que suas famílias e suas casas sejam aniquiladas, por obra da selvageria genocida de Israel contra um povo que não tem para onde ir ou onde se esconder.
A coragem e dedicação dos jornalistas palestinos reluz entre a tragédia deste corajoso documentário. Embora Israel tenha banido a imprensa global de entrar em Gaza, essas almas valentes continuam a arriscar tudo para assegurar que um dos piores crimes de nossa era não seja esquecido. Através de suas lentes, vemos a devastação e os brutais crimes de guerra e contra a humanidade se desenrolarem ao vivo em nossas telas. Os jornalistas palestinos não apenas registraram a História, como fatalmente se tornaram parte dela, ao pagar o último preço por seu compromisso com a verdade e a justiça.
Seus sacrifícios não são em vão. Os registros que capturaram estão agora impressos na consciência coletiva de toda a humanidade. Os nomes e rostos de crianças como Lama e Sama Badwan, ou do menino que perdeu tudo, serão lembrados para sempre como símbolos da inocência perdida diante dos impiedosos massacres de Israel. A dedicação inabalável dos repórteres palestinos certamente servirá de evidência aos promotores e juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI) e do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), ao longo do processo para responsabilizar Estado e governo israelense por sua guerra perversa.