O monitor de capoeira Luciano Caiçara descobriu uma maneira de promover a resistência e a cultura na comunidade carente do bairro Capuava, uma região periférica e rural de São José dos Campos. Em 2017, fundou o projeto Alegria Colorida, uma iniciativa sem fins lucrativos que busca levar a ancestralidade e a cultura de resistência da capoeira para a comunidade. O projeto atende tanto crianças quanto mulheres vítimas de violência doméstica, utilizando a capoeira como uma ferramenta de transformação social. Veja a seguir nossa entrevista.
O que te motivou a iniciar esse trabalho?
Quando eu era garoto, a capoeira sempre me fascinou, mas não havia lugares onde eu pudesse praticar. Com o tempo, minha vida foi ocupada pelos estudos e pelo trabalho, e acabei adiando esse sonho. Foi apenas na vida adulta que finalmente comecei a praticar capoeira. Ao observar meu filho passar pela mesma dificuldade no nosso bairro, percebi que as crianças só tinham o judô como opção esportiva. Em vez de levar meu filho para treinar em outro bairro, pensei nas outras crianças da comunidade que não teriam essa oportunidade. Foi então que decidi trazer a capoeira para nossa comunidade, criando uma chance para todos, não só para meu filho.
Quais são os benefícios que a iniciativa Alegria Colorida traz para o bairro de Capuava e para os capoeiristas locais?
A capoeira oferece inúmeros benefícios, tanto para a saúde física quanto para o bem-estar social da comunidade. Em primeiro lugar, proporciona uma alternativa saudável para afastar as pessoas das telas dos celulares e da violência das ruas, permitindo que se concentrem no desenvolvimento do corpo e da mente. Em segundo lugar, a capoeira tem o potencial de se tornar uma carreira para aqueles que começam a praticar agora.
Este patrimônio cultural brasileiro é altamente valorizado internacionalmente, com muitos mestres de capoeira espalhando a arte em todo o mundo. A capoeira está crescendo em popularidade na Europa, América Latina e até mesmo em países do Oriente Médio. Eu não sei se algum dos meus alunos se tornará um mestre, abrirá sua própria academia ou viajará para ensinar capoeira no exterior, mas sei que estou oferecendo a eles essa possibilidade. Por isso, continuo dedicando meu esforço e paixão a essa iniciativa.
A capoeira é apenas uma arte marcial?
De jeito nenhum. A capoeira é muito mais que uma arte marcial; é uma cultura rica e multifacetada, profundamente enraizada na história do Brasil. Ela não é apenas um sistema de luta que os africanos e afro-brasileiros escravizados usaram como forma de resistência e busca pela liberdade. A capoeira também é um elo com a literatura, por exemplo, através dos contos de cordel. Muitas crianças e pais da nossa comunidade, mesmo aqueles de origem nordestina, não conheciam autores como Ariano Suassuna até terem contato com a capoeira. Através dela, descobriram o cordel, uma das joias da nossa cultura literária.
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Além disso, a capoeira está intimamente ligada à música, especialmente por meio da percussão nas rodas. As músicas que tocamos e cantamos narram histórias de resistência e preservação cultural, abrangendo o português, os idiomas africanos e indígenas. Mesmo com instrumentos simples, como o berimbau — uma corda, um pedaço de pau e uma cabaça — a nossa música transmite a sincretização das religiões de matriz africana com o cristianismo europeu, além de narrar a trajetória do Brasil.
A capoeira é, portanto, uma expressão cultural completa que representa a essência do Brasil de maneira única. Vai além do futebol, que, apesar de sua popularidade, tem suas origens na Inglaterra e não reflete toda a profundidade da cultura brasileira.
Vi um dos seus vídeos nas redes sociais em que as crianças fazem saudações em espanhol. Como isso se relaciona com a capoeira?
Embora eu seja apenas um monitor e não um professor de espanhol, sempre tento compartilhar tudo o que aprendo com a minha comunidade. A capoeira é, acima de tudo, uma troca de conhecimentos e experiências entre seus praticantes. Eu vi quando você [Lucas Siqueira] esteve em Cuba e filmou uma academia de capoeira e pensei “por que não já ajudar a preparar alunos para essa oportunidade?” Se eu adquiro algo novo, seja no campo da capoeira ou além, quero dividir isso com as crianças e todos ao meu redor. As saudações em espanhol são um exemplo disso — uma forma de enriquecermos nossa prática e expandirmos nossos horizontes culturais.
Na capoeira, não buscamos ser melhores para nos destacarmos individualmente, mas sim evoluir coletivamente. Compartilhar conhecimentos, seja sobre idiomas ou qualquer outra área, reforça esse espírito comunitário. Queremos aprender uns com os outros e crescer juntos, fortalecendo a nossa cultura e os laços entre nós.
A iniciativa Alegria Colorida vai além da capoeira. Recentemente, houve uma festa junina e outras atividades não relacionadas. Por que decidiram fazer isso?
Nosso bairro é bastante isolado e, muitas vezes, as pessoas daqui ficam de fora das atividades que acontecem no resto da cidade. Somos uma comunidade economicamente desfavorecida. Eu mesmo trabalho como pedreiro durante o dia e, à noite, como motorista de aplicativo. Um dia, descobri que a prefeitura estava organizando uma grande e tradicional festa junina, típica de uma cidade grande como São José dos Campos. No entanto, no nosso bairro, o transporte público só funciona até as 17 horas, e a maioria das pessoas não tem carro. Isso significava que muitos não poderiam ir à festa e voltar para casa. Fiquei profundamente chateado ao perceber que, mais uma vez, estávamos sendo excluídos.
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Decidi que não podíamos aceitar essa exclusão. Cheguei em casa e, com a ajuda de algumas mães da comunidade, organizei uma festa junina improvisada para o dia seguinte. Com o pouco dinheiro que tinha, comprei alguns itens simples, mas as mães se envolveram e contribuíram com o que podiam. No final, conseguimos montar uma festa significativa e animada, com quase todo o bairro presente. Se não tivéssemos feito isso, não teríamos tido nenhuma celebração junina.
Essa iniciativa não foi apenas sobre a capoeira; foi sobre criar oportunidades de alegria e união para nossa comunidade. Queremos garantir que todos tenham a chance de participar e celebrar juntos, independentemente das circunstâncias econômicas ou do isolamento geográfico.
Você fala bastante sobre as condições do seu bairro. A prefeitura apoia de alguma forma projetos como Alegria Colorida, desenvolvidos para a sua comunidade?
Absolutamente nada! Há mais de vinte anos, a prefeitura alega que o nosso bairro é irregular. Não temos tratamento de esgoto e a água só chega por meio de caminhões-pipa ou poços cavados pelos próprios moradores. O transporte público e a energia elétrica existem apenas porque são fontes de lucro para alguém. Não posso discutir com as leis, mas é frustrante que não haja nenhum tipo de incentivo ou apoio para a nossa comunidade.
E quem financia o projeto Alegria Colorida?
No início, o sensei do judô, que também atua na comunidade, ajudou muito ao nos fornecer um espaço para as atividades. Com o tempo, conseguimos alguns apoiadores que nos ajudaram a obter uniformes, tatames e até um trampolim. No entanto, a maior parte do financiamento ainda vem do nosso próprio bolso. Eu e alguns pais contribuímos como podemos, mas cada dia é uma batalha para manter o projeto funcionando.
Em uma cidade grande como São José dos Campos, não há nenhum incentivo para projetos como o seu?
Em outras regiões da cidade, há muitos esportes, academias e projetos culturais que recebem apoio ou são inteiramente financiados pela prefeitura. No entanto, esses projetos muitas vezes têm pessoas lucrando muito enquanto pagam pouco àqueles que realmente fazem o trabalho. Eu não aceito esse tipo de injustiça. Prefiro trabalhar gratuitamente para minha comunidade do que ser explorado para que outros se beneficiem do meu esforço. Nossa luta é por dignidade e por oportunidades reais de crescimento para todos.
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Agora tratando a capoeira como um esporte, como arte marcial em si, quais os benefícios da capoeira para a sociedade.
A capoeira não foi criada para defesa, foi criada para ataque. Para que seres humanos escravizados pudessem se libertar dos escravagistas. A capoeira, como luta é muito agressiva, já como esporte ela é a arte marcial menos violenta. Em todos os outros esportes existem competições, medalhas e troféus, para nós não. Estamos acostumados a não ganharmos nada a não ser a nossa própria liberdade, e é isso que tento ensinar. A capoeira é como uma mãe de baixa renda, ela nos ensina que não precisamos ser competitivos e levamos isso para a vida, digo para eles que não precisamos ter o melhor carro, a melhor casa, ser o melhor aluno, pois não estamos competindo uns com os outros, mas temos que ser o melhor para nós mesmo. Vivemos em um mundo que sempre explorou os mais vulneráveis, então, para nós, a vida é feita de derrotas. E a capoeira nos ensina a levantar depois de cada rasteira.
O projeto Alegria Colorida também inclui as mães da comunidade. Como isso funciona?
No Brasil, é difícil encontrar uma mulher que não tenha enfrentado misoginia, violência doméstica ou agressão física ou verbal, em algum momento da vida. Quando comecei o projeto com as crianças, algumas mães me procuraram pedindo aulas. Percebi que havia algo mais profundo nesse pedido e decidi criar uma turma específica para as mulheres. Para muitas delas, o objetivo não era apenas a prática esportiva. Algumas queriam aprender técnicas de autodefesa, enquanto outras buscavam um espaço seguro para conversar e compartilhar experiências.
Eu não sou psicólogo nem tenho formação profissional para oferecer apoio especializado, mas como alguém que condena o machismo e a violência contra as mulheres, não podia ignorar essa necessidade.
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Adaptamos nossas aulas para atender a essas demandas. Em vez de chamá-las de aulas de capoeira, decidimos nomeá-las como “condicionamento físico”. Algumas vezes, praticamos capoeira; em outras, nos concentramos apenas em alongamentos. Há dias em que simplesmente nos reunimos para conversar. Essa flexibilidade permite que as mulheres escolham o que é mais necessário para elas em cada momento.
O impacto dessas aulas tem sido significativo, não apenas para elas, mas também para mim. Estou aprendendo com suas experiências e crescendo como homem, pai e marido. Esse processo de aprendizado mútuo tem fortalecido a todos nós, criando um espaço de apoio e crescimento contínuo.
Atualmente, existem muitas leis de incentivo, como a Aldir Blanc e a Paulo Gustavo, nas quais a capoeira pode se encaixar. Você já considerou participar de algum desses projetos?
Como mencionei, eu trabalho como pedreiro e também como motorista de aplicativo, o que deixa meu tempo bastante limitado. Às vezes, até perco oportunidades de trabalho por causa das aulas de capoeira que dou nas segundas, quartas e sextas-feiras. Por isso, não tenho muito tempo para estudar essas leis de incentivo nem para aprender a escrever projetos de forma competitiva.
Procurei várias pessoas para ajudar com a redação de projetos. Encontrei alguns que cobram valores que estão fora do meu alcance, enquanto outros exigem uma porcentagem que considero injusta. Na prefeitura, uma vereadora do Partido dos Trabalhadores (PT) me forneceu um guia e um manual para elaborar propostas de acordo com essas leis de incentivo, mas o processo é complexo e consome muito tempo. Se eu me dedicar a escrever esses projetos conforme as exigências legais, acabaria sem tempo para as atividades do Alegria Colorida. É um dilema difícil, pois meu foco principal é continuar o trabalho com a comunidade.
Por enquanto, continuo a fazer o que posso com os recursos que tenho, buscando equilibrar minhas responsabilidades e a paixão pelo projeto.
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As redes sociais ajudam na divulgação do seu trabalho?
Não recebemos nenhuma remuneração das redes sociais por meio de monetização, mas elas são essenciais para fazer com que mais pessoas conheçam o nosso trabalho e se inspirem a realizar iniciativas semelhantes em suas comunidades. No entanto, não tenho tempo nem expertise para dedicar-me totalmente às redes sociais para ampliar nossa visibilidade. Atualmente, são as crianças, inclusive meu filho de 11 anos que treina conosco, que produzem o conteúdo para nossas redes sociais. Seria benéfico se pudéssemos obter alguma remuneração através das redes sociais, mas, até o momento, o principal benefício é sermos vistos e reconhecidos. Isso motiva bastante nossos alunos e, indiretamente, ajuda-nos a construir um currículo online que é necessário para concorrer a editais públicos. O engajamento dos nossos seguidores é crucial nesse aspecto.
Existem metas para o futuro?
Sempre há! Amo o que faço e quero que o projeto Alegria Colorida alcance novos horizontes. Quero que essa iniciativa de vida impacte o maior número possível de pessoas. A capoeira representa uma resistência cultural. Não somos revolucionários nem partidários, mas, de certa forma, somos parte de uma resistência em uma sociedade marcada por lutas de classe. Com incentivos ou não, acreditamos que um dia alcançaremos essas metas. Sabemos como é cair, mas, acima de tudo, sabemos como nos levantar para enfrentar o próximo desafio.
Para conhecer mais sobre o projeto Alegria Colorida e a iniciativa social de Luciano Caiçara, siga sua página do Instagram e seu canal do YouTube.
Este é o primeiro passo para continuar um trabalho social iniciado por um capoeirista dedicado à resistência cultural.