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Repatriação ilegal: Advogado de Muslim Abuumar comenta deportação do Brasil

Ativistas pró-Palestina se juntam a Omar Habib (centro), irmão de Muslim Abuumar, professor palestino deportado pela Polícia Federal, em protesto no aeroporto de Guarulhos, em 23 de junho de 2024 [Reprodução]

Na última semana, o Brasil acompanhou atentamente o drama de uma família palestina que foi detida no aeroporto de Guarulhos e deportada para a Malásia. O caso é significativamente mais complexo do que simples acusações ou insinuações superficiais. Ele envolve múltiplas camadas legais e a ação de diversas instituições governamentais. Para esclarecer essas questões complexas, consultamos o dr. Bruno Henrique de Moura, advogado brasileiro que representa a família palestina do professor palestino Muslim Abuumar, que retornou à Malásia.

Quais foram os fundamentos legais específicos utilizados pela Polícia Federal e pela Justiça brasileira para ordenar a repatriação de Muslim Abuumar e sua família?

A Polícia Federal se baseia em uma informação que diz ter recebido da embaixada dos Estados Unidos no Brasil, afirmando que Muslim consta em uma lista chamada TSC (Terrorist Screening Center), conhecida nos Estados Unidos como “No Fly List”. Essa é uma lista em que o governo dos Estados Unidos coloca pessoas que considera “terroristas”. Essa lista já foi declarada inconstitucional pela justiça americana mais de uma vez. Essa mesma lista foi usada para perseguir Nelson Mandela, que esteve nela durante um período e só foi excluído em 2008 por um decreto do ex-presidente George W. Bush. Portanto, trata-se de uma lista com um viés político claro.

Professor palestino Muslim Abuumar [Reprodução]

A fundamentação da Polícia Federal é que Muslim teria ligação com o Hamas e seria um porta-voz autorizado da organização, o que nós negamos veementemente. Argumentam que ele seria uma pessoa terrorista incluída na TSC. Para nós, essa lista não é uma justificativa suficiente para considerá-lo um agente terrorista, especialmente porque ele não praticou nenhuma conduta considerada crime no Brasil, nenhuma conduta considerada crime em nenhum país.

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O mais surpreendente para nós é que, mesmo sem provas de qualquer conduta criminosa por parte de Muslim no Brasil, a Polícia Federal simplesmente seguiu as instruções do governo dos Estados Unidos transmitidas por sua embaixada.

A acusação de que Muslim Abuumar teria ligações com o Hamas foi um dos principais motivos citados para a sua repatriação. Qual é a sua avaliação sobre a validade dessas acusações, especialmente considerando que o Hamas não é classificado como organização terrorista pela Organização das Nações Unidas (ONU) ou pelo Brasil?

O Muslim postou mais cedo, reforçando que ele não é membro do Hamas. O que ele possui, como dezenas de outras pessoas, é uma compatibilidade ideológica com algumas das bandeiras que o Hamas defende, entre elas a defesa da causa palestina, a libertação do povo palestino, a independência e a garantia de um território soberano governado por e para os palestinos. Isso não é algo exclusivo do Muslim: dezenas de políticos brasileiros também defendem esses ideais, e isso não os transforma nenhum deles em membros do Hamas, assim como não transforma Muslim em membro do Hamas. Mesmo que Muslim fosse membro do Hamas — o que ele não é — integrar um grupo político não é crime no Brasil.

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A Lei de Imigração brasileira é clara ao afirmar que ninguém pode ser impedido de entrar no território brasileiro por questões étnicas, raciais ou políticas. A Polícia Federal, em nenhum momento, apontou que Muslim tenha participado, por exemplo, dos ataques a Israel em 7 de outubro. Não se mencionou que ele financiou, foi mentor ou partícipe intelectual da elaboração do plano, ou que tenha ajudado de qualquer forma esses atos ou qualquer ato terrorista.

Para nós, isso parece ser nada mais do que uma cortina de fumaça para impedir que um palestino, que é SIM um ativista e um intelectual, que denuncia explicitamente no genocídio do povo palestino praticado pelo governo atualmente no poder em Israel, entrasse no Brasil. Portanto, vemos isso como uma clara perseguição política.

Como o senhor avalia a alegação de que a decisão de repatriação foi influenciada por pressões dos Estados Unidos e de Israel? Em que medida isso pode ter comprometido a soberania e a independência das autoridades brasileiras?

Eu desconfio que houve participação do governo de Israel, mas não tenho como garantir. Quanto ao governo americano, há evidências claras de envolvimento, visto que a própria Polícia Federal afirmou, em sua documentação, ter recebido um ofício do governo dos Estados Unidos. Isso me causa muita estranheza, pois as autoridades brasileiras não fizeram averiguações prévias, como, por exemplo, consultar a Interpol. Poderiam ter questionado a Interpol sobre os motivos e as fundamentações pelas quais o governo americano incluiu essa pessoa na lista, e se essa pessoa praticou algum crime, mesmo que fosse contra o governo americano, o que o governo americano poderia, então, justificar a inclusão dessa pessoa na lista, afirmando que ela cometeu algum crime em seu território, o que seria válido. No entanto, nem isso foi apresentado nas informações fornecidas pela Polícia Federal no processo.

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Isso me preocupa, pois acatar simplesmente um pedido da polícia norte-americana sem esgotar os recursos legais cabíveis ao Muslim e a qualquer pessoa em situação similar, e apenas cumprir as ordens dos Estados Unidos, é alarmante. Ainda mais preocupante é a aparente falta de ação do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Justiça. Em nenhum momento, ao menos publicamente, eles tentaram descobrir as reais motivações do governo americano para incluir Muslim na lista.

Quais direitos fundamentais de Muslim Abuumar e sua família o senhor acredita que foram violados durante o processo de repatriação? Houve, na sua opinião, uma falha em garantir o devido processo legal?

O direito à ampla defesa, ao contraditório, e ao princípio da presunção de inocência — também conhecido como princípio da não culpabilidade —, além da dignidade da pessoa humana, que são fundamentais e as próprias garantias processuais previstas na Portaria 770, que a Polícia Federal utilizou para justificar suas ações, asseguram explicitamente que uma pessoa que recebe um termo de impedimento tem o direito de recorrer dessa decisão. Esse direito, que inclui o duplo grau de jurisdição, permite que o recurso seja analisado até pelo superintendente da polícia regional no estado ou do Distrito Federal, pelo superintendente federal. Esse direito foi negado a Muslim e sua família, que estão sofrendo com essa situação.

Como o senhor vê o impacto dessa repatriação para a comunidade palestina residente no Brasil? Existe o risco de que outros indivíduos com conexões familiares ou políticas semelhantes possam enfrentar ações semelhantes no futuro? 

Acredito que a Frente Palestina SP pode responder melhor a essa pergunta. Do ponto de vista jurídico, é uma situação muito complicada porque causa uma insegurança jurídica. Isso significa que, de acordo com as interpretações subjetivas das autoridades, se houver um pedido, a Polícia Federal pode barrar essas pessoas. O que é ainda mais preocupante é a própria sistemática do direito brasileiro. Se não há proteção dentro do direito brasileiro quando ele é infringido, ou quando há pedidos de certas autoridades estrangeiras, então ninguém está protegido.

Isso não afeta apenas os palestinos, mas também os próprios brasileiros e outras comunidades, como afegãos, russos, ucranianos, venezuelanos, entre outros. Essa situação causa uma preocupação de caráter global.

A suspeita de que a esposa de Abuumar poderia estar tentando obter cidadania brasileira para seu filho foi um dos pontos levantados. Como o senhor responde a essas alegações, e o que elas implicam para as políticas de imigração do Brasil?

Não há nada na legislação brasileira que diga que a Polícia Federal ou a qualquer órgão possa impedir alguém de ter um filho no Brasil. Aceitar isso seria admitir que temos um programa de limpeza étnica em que só aceitamos que indivíduos de certas origens étnicas, raciais ou políticas tenham filhos no país. Isso, para mim, é higienismo social.

É muito estranho que a Polícia Federal utilize esse argumento. Mesmo que consideremos a possibilidade de que alguém queira ter um filho no Brasil para facilitar o pedido de cidadania, devemos lembrar que o processo de cidadania é individual. Cada pessoa faz seu próprio pedido, e esses pedidos são analisados de maneira singular. Ter um filho brasileiro não garante automaticamente a cidadania para os pais. Existe um processo claro para isso.

A única diferença é que, quando uma pessoa tem um filho brasileiro, o período necessário de permanência ininterrupta no Brasil para requerer a cidadania é reduzido para um ano. Sem filhos brasileiros, o período é de 15 anos. No entanto, a pessoa ainda deve atender aos mesmos requisitos e cumprir as mesmas contrapartidas que qualquer outro requerente. Portanto, considerar essa questão como um impedimento para a cidadania é absurdo.

A Polícia Federal declarou ter agido com base em um “alerta vermelho” da embaixada dos Estados Unidos. Até que ponto isso é consistente com a legislação brasileira e com a prática habitual das operações da PF em casos semelhantes?

Qualquer órgão pode emitir um alerta, mas esse alerta precisa ter uma fundamentação compatível com a legislação brasileira e deve cumprir certos requisitos. A Polícia Federal simplesmente acatou a existência do nome de Muslim em uma lista e concluiu que ele era um terrorista. No entanto, é crucial entender a motivação por trás da inclusão de uma pessoa em tal lista.

A polícia dos Estados Unidos não afirmou que Muslim participou do planejamento de um ataque, da concepção ou do financiamento de qualquer ato criminoso que envolva interesses dos Estados Unidos. Não há essa afirmação. A única coisa mencionada é que ele seria um suposto porta-voz do Hamas, mas também não há indícios de que ele tenha praticado qualquer ato como porta-voz, como incitar ataques ou realizar qualquer ação específica. Não há nenhuma menção de que ele tenha cometido algum crime em qualquer país. Inclusive, apresentamos uma certidão negativa de antecedentes criminais emitida pelo Estado da Palestina, governado pela Autoridade Palestina com financiamento dos Estados Unidos.

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Então, se houvesse algum interesse dos Estados Unidos, poderíamos imaginar que isso estaria registrado na justiça da própria Palestina. Estamos também obtendo um documento do governo da Malásia que demonstrará que Muslim não responde a nenhum processo no país. Para mim, tudo isso é muito suspeito e causa estranheza o fato de a Polícia Federal simplesmente seguir as ordens da embaixada norte-americana sem questionamento.

Quais são os próximos passos legais que sua equipe pretende seguir para contestar a repatriação de Muslim Abuumar e sua família? Existem planos para apelar ou reverter a decisão judicial?

O mandado de segurança não se limitou a pedir a garantia da permanência da família Muslim no Brasil. Há outros pedidos, como a declaração da ilegalidade da ação da Polícia Federal e garantias para que eles não sofram mais tentativas de impedimento de entrar no Brasil, desde que estejam com a documentação correta e preencham todos os requisitos necessários para imigração no país. O mandado de segurança continuará em vigor. Estou analisando outras opções processuais que decidirei nos próximos dias, agora que temos um pouco mais de tempo para refletir sobre os próximos passos.

Esta ação pode estabelecer um precedente para a criminalização de atividades políticas ou de solidariedade em relação à Palestina no Brasil? Quais são as implicações potenciais para outros indivíduos ou grupos envolvidos em atividades semelhantes?

Sim, eu acredito que é muito problemático para a soberania brasileira, e para a própria Constituição brasileira, que é uma construção ideológica diferente da americana.

Que medidas o senhor acredita que o Estado Brasileiro deveria tomar para investigar e abordar adequadamente os eventos que levaram à repatriação de Muslim Abuumar? Quais ações seriam necessárias para evitar que situações semelhantes ocorram no futuro?

Seria importante que o Ministério Público Federal abrisse um inquérito policial para apurar por qual razão a Polícia Federal deixou de cumprir, inclusive, os requisitos da Portaria 770 de 2019. Para mim, isso é o ato de maior flagrante ilegalidade, pois a polícia teria que ter dado o direito ao Muslim de se defender e teria que ter dado o direito ao Muslim de recorrer em solo brasileiro, o que não foi permitido.

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