O número de crianças no Sudão que sofrem grave escassez de alimentos quase dobrou em seis meses, alcançando 75% das crianças no país, vitimadas por recordes de fome e risco de desnutrição devido à guerra, reportou a ong Save the Children.
Com base em novos dados dramáticos da Classificação Integrada de Fase de Segurança Alimentar (IPC) — iniciativa que monitora a severidade da fome em diversas áreas —, a ong Save the Children descobriu que 16.4 milhões de crianças, ou uma em cada três no Sudão, vivem níveis de “crise”, “emergência” e “catástrofe” de fome.
Em dezembro, eram 8.3 milhões de crianças nessa situação.
Os catorze meses de guerra civil, entre o exército regular e seu ex-parceiro de golpe de Estado, as Forças de Suporte Rápido (FSR), paralisaram a produção agrícola de Cartum, Darfur, Cordofão e Gezira.
Junto ao deslocamento crescente e às restrições de acesso humanitário, além da falta de recursos e doações, a situação no Sudão evoluiu para “o pior desastre humanitário do mundo”, reportou a ong.
Nesta quinta-feira (27), uma avaliação do Programa Alimentar Mundial (PAM), agência das Nações Unidas, corroborou a avaliação, ao indicar casos de sudaneses obrigados a comer folhas e terra para sobreviver.
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Na semana passada, uma reportagem da agência Reuters divulgou imagens por satélite que mostram a expansão dos cemitérios diante da crise.
O conflito que ainda se agrava impediu a distribuição de alimentos, deixou milhares de camponeses mortos e esvaziou os mercados do país.
Há risco de fome em 14 áreas, com 755 mil pessoas em “nível catastrófico”, quando as famílias não conseguem suprir suas necessidades básicas e exauriram suas opções de sobrevivência. A Save the Children estima que ao menos 355.605 são crianças.
Áreas afetadas incluem: Ilha Tuti, no rio Nilo; o bairro operário de Mayo, em Cartum; o centro comercial de Madani, em Gezira; a cidade de al-Fasher, sob cerco, em Darfur do Norte, e campos de refugiados em outros estados.
Segundo o Comitê de Resgate Internacional, três milhões de pessoas podem morrer de fome devido à escalada em curso.
De acordo com Eatizaz Yousif, diretora nacional da IRC, ao advertir para subnotificação, “quase metade do país vivencia alguma forma de carência humanitária”.
“O índice de vítimas não computadas, morrendo em silêncio, me parece inconcebível, diante do colapso do sistema de saúde”, acrescentou.
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“Os novos números devem nos causar arrepios”, comentou Arif Noor, diretor nacional da Save the Children. “Catorze meses de guerra devastadora transformaram o país em uma incubadora de campos de batalha”.
“Centenas de milhares de crianças que conseguiram escapar das balas e bombas agora enfrentam a morte por inanição e doenças”, acrescentou. “Onde está a indignação, e a ação, necessária para tratar desse absurdo? Já é tarde mais para impedir a desnutrição em massa. Mas mediante ações imediatas e coordenadas, podemos salvar vidas — e a história nos julgará se não o fizermos”.
Índices da IPC publicados em março demonstraram que, apenas em um campo para os deslocados, quase um quarto das crianças (23%) sofriam de síndrome consumptiva, ou seja, perda de peso involuntária, sintoma mais visível e letal da desnutrição.
A resposta humanitária do Sudão se mantém subfinanciada: doadores enviaram 16.8% dos US$2.7 milhões previstos pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Durante uma conferência humanitária em Paris, a Save the Children descobriu que os recursos doados ao Sudão nos cem primeiros dias de 2024 foram menos de um quinto do valor obtido em apenas dois dias para reconstruir a Catedral de Notre Dame.
A Save the Children pede cessar-fogo urgente e avanços por um acordo de paz entre as partes no Sudão. Neste entremeio, exige acesso humanitário livre e seguro através das fronteiras e em todo o país, além da salvaguarda de bens e infraestrutura essencial — como mercados, campos e armazéns.
A IPC reiterou que sua análise registra uma “grave e rápida deterioração da situação de segurança alimentar” no Sudão, batendo recordes nacionais.
Uma crise de fome pode ser declarada se 20% da população estiver submetida a níveis catastróficos de escassez, com 30% das crianças com desnutrição aguda e duas mortes por inanição ou enfermidades relacionadas para cada dez mil habitantes.
Desde a criação do sistema, há 20 anos, apenas duas crises de fome foram declaradas: em partes da Somália, em 2011, e partes do Sudão do Sul, em 2017.
Nesta quarta-feira (26), especialistas da ONU acusaram ambas as partes em conflito de usar a fome como arma de guerra, seja por obstrução, saque ou exploração do socorro humanitário destinado à população civil.
“Governos estrangeiros que forneçam apoio financeiro e militar a ambos os lados são cúmplices da fome e dos crimes de guerra e lesa-humanidade”, alertou o comunicado, ao se somar aos apelos por doações ao Plano de Resposta Humanitária do Sudão.
“Estamos correndo contra o tempo”, insistiu Cindy McCain, diretora executiva do PAM. “Para cada pessoa que auxiliamos neste ano, outras oito precisam desesperadamente de ajuda”.
A guerra no Sudão eclodiu em abril de 2023, quando o exército regular tentou integrar milícias aliadas a seu contingente.
Desde então, ao menos 16 mil pessoas foram mortas, além de dez milhões deslocadas à força, segundo dados da Organização Internacional para Migração (OIM). Ao menos 600 mil refugiados, sobretudo mulheres e crianças, fugiram ao vizinho Chade.
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