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O Solo e o Mar: Um retrato das histórias ocultas de violência no Líbano

Prédio abandonado após a guerra civil do Líbano, visto no filme The Soil and the Sea [Daniele Rugo/Reprodução]

“O que está acontecendo em Gaza é um genocídio, executado enquanto o mundo todo assiste”, reiterou o pesquisador e cineasta Daniele Rugo durante nossa conversa sobre seu impactante novo documentário The Soil and the Sea — em tradução livre, O Solo e o Mar. Diante do bombardeio israelense contra o enclave sitiado, que faz chover, noite e dia, morte e destruição, Rugo busca refletir sobre traumas correntes.

De muitas maneiras, o aflito passado libanês antevê a jornada de uma população cheia de traumas e cicatrizes, após sucessivas chacinas realizadas por Israel. Se a guerra civil no Líbano ensina alguma coisa, é precisamente o fato de que, para haver reconciliação, é essencial que haja um processo corajoso para exumar verdades — não importa quão inconvenientes sejam.

Com o objetivo de criar um espaço para o luto e a reconciliação, o comovente filme de Rugo traz à luz fatos sepultados por décadas. O passado é como uma sombra que paira sobre todos, como revelam relatos apavorantes, e as feridas abertas da terra jamais se fecham totalmente caso não velemos devidamente os mortos.

Rugo — um cineasta premiado — expõe a verdadeira comumente ignorada das covas coletivas e dos desaparecimentos forçados ao longo da guerra. O Líbano ainda vive as ramificações dos 15 anos de conflito, entre 1975 e 1990, que deixaram 150 mil morto. A obra busca dar voz àqueles que buscam verdade, memória e justiça.

Jardins de Tahwita vistos no filme The Soil and the Sea [Daniele Rugo/Reprodução]

Focado nas mais de cem valas comuns até então intocadas, debaixo de escolas, hotéis, plantações e mesmo estradas movimentadas por todo o país, Rugo leva o espectador a uma jornada audiovisual atemorizante diante de tragédias pessoais que transcendem a estatística. Estima-se que 17 mil pessoas desapareceram ao longo da guerra. Contudo, múltiplas valas contendo restos humanos foram descobertas, em lugares inesperados do cotidiano, como pomares, hortas, mesquitas e obras da construção civil.

Para Rugo, The Soil and the Sea pode ser assistido como uma espécie de sequência de seu documentário anterior About a War (Sobre uma guerra, 2019), cujo protagonista é um ex-miliciano libanês. Após explorar a guerra pelos olhos de um perpetrador, Rugo sentiu a demanda por amplificar as vozes das vítimas, a fim de abordar devidamente o legado duradouro do conflito. A ideia de sua nova obra surgiu organicamente durante conversas com o público libanês, após a exibição de About a War.

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Entretecido entre uma intensa cinematografia de paisagens, entre o horror e a beleza, o documentário constrói camadas e mais camadas de testemunhos de primeira pessoa daqueles que vivenciaram a violência. Suas histórias — incluindo o massacre ao campo de refugiados palestinos de Sabra e Shatila — revelam atrocidades quase inteiramente esquecidas que dialogam com temas universais de dor e resiliência.

“Você não pode apenas olhar para os lugares, imaginar ou pressupor o que aconteceu ali”, explicou Rugo. “As vozes que ouvimos ecoam histórias submersas de violência que esses lugares, no entanto, viveram”. O contraste visual estabelecido pela justaposição de cenas contemporâneas de aparente paz, em paralelo a um passado hediondo, torna esse apagamento da história dolorosamente tangível.

Em um relato, uma mulher reconhece o provável local de sepultamento de vítimas de um massacre sob uma horta que comprou. Após tanto revirarem o solo, sob um novo propósito, traços visíveis da morte desapareceram. “Mas você não sabe, de verdade, o que está debaixo de nós”, admitiu a mulher. O contraste de uma superfície calma com os corpos que habitam no subterrâneo leva o público a encarar verdades chocantes — de fato, chocantes demais para ignorarmos, apesar das sensibilidades políticas que as orbitam.

Um tema chave é o trauma profundo enfrentado por parentes dos desaparecidos. Seus restos mortais se mantêm inacessíveis, trancados sob o segredo de valas comuns. Não há corpos para velar ou túmulo para visitar, refletindo uma “perda ambígua” cuja cura e conclusão são negadas. Como reportam os entrevistados palestinos, cujos familiares desapareceram em Sabra e Shatila, este luto sem fim transcende gerações, como fardo e trauma que demandam justiça.

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A abordagem de Rugo confronta um desafio frequente daqueles que buscam verdade, memória e justiça: Como equilibrar a exposição dos crimes passados com as demandas presentes por paz e reconciliação? Tão perigoso quanto pareça ser, Rugo evita aderir a narrativas partidárias para tratar de sentimentos universais. Seu enfoque é naquilo que alguns chamam de “comunidades da dor” — entrelaçadas por perdas, indiferentes ao sectarismo. Ao evitar os detalhes conjecturais das raízes geopolíticas da guerra civil, o filme é capaz de transmitir relatos pessoais e permitir às vítimas sem protagonismo.

Uma imagem do Tahwita Garden vista em um still do filme Soil and the Sea [Daniele Rugo]

Ainda assim, as atrocidades registradas deixam claro que as feridas abertas do Líbano não podem sem curar sem verdade e justiça. A insistência dos parentes das vítimas por respostas reforça o fato de que se reconciliar com o passado ainda é urgente, para que todo o país encontre uma saída de seus traumas. Pode ser uma tarefa deveras árdua e inglória, reconhece Rugo, à medida que a manutenção da hegemonia política de alguns dos principais agentes da violência perpetua o medo de falar abertamente dos crimes perpetrados contra civis.

Contudo, o crescente movimento de ativismo por verdade e justiça, com apoio formal do governo, parece trazer esperanças. Rugo produziu The Soil and the Sea em parceria com a ong ACT for the Disappeared, uma das muitas associações que lutam por justiça. Em 2018, o Líbano enfim estabeleceu sua Comissão Nacional Independente incumbida de investigar o destino dos milhares de desaparecidos. Embora seu mandato limítrofe impossibilite ao órgão que julgue ou indicie os criminosos, o filme em si foi produzido com intuito de auxiliar na checagem dos fatos.

Para além de apoiar a iniciativa, Rugo pretende, com seu novo documentário, manter as tradições da arte em fomentar o diálogo da sociedade em torno do trauma, no caso, sobre a guerra civil que assolou o Líbano. Outras peças audiovisuais, romances e obras de arte se juntam a essa missão, muito embora não cheguem, muitas vezes, ao grande público. Ao proporcionar uma plataforma para retratar a perda e a resiliência, The Soil and the Sea carrega adiante um diálogo cultural para curar feridas há décadas abertas.

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Essa intrincada tapeçaria de imagens, sons e relatos humanos culmina, quem sabe, em um saco no âmago dos espectadores. Os temas da perda, do apagamento da história e das maneiras de lidar com as atrocidades da guerra são universais, carregando o filme ao público internacional desde sua estreia, no Reino Unido, em 19 de fevereiro.

Ao orientar sua câmera aos desaparecidos e seus entes queridos, a abordagem contida — embora incisiva — de Rugo desnuda verdades desafiadoras cujas cicatrizes tomam a terra e os mares do Líbano. Enquanto o mundo todo vê palestinos sepultados em valas comuns, no genocídio israelense em curso em Gaza, as histórias compiladas por Rugo assumem um novo caráter, ao instar as pessoas a perceber a decadência resultante de ignorar e tentar esquecer as atrocidades. Apenas ao encará-las com coragem podemos construir um futuro de paz e justiça.

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