“Há pessoas que estão vivendo em tamanha miséria [em Gaza] que já não percebem a dimensão da sua dor”. E isso que diz Ahmed, taxista de 40 e poucos anos, sobre o dia a dia nas ruas de Gaza, enquanto a câmera registra um precário mercado.
Este documentário, de mesmo novo do enclave sitiado, lançado em 2019, Gaza é uma obra poderosa e comovente sobre a vida cotidiana dos palestinos comuns presos nesta estreita faixa de terra. Para aqueles que o assistem, as palavras de Ahmed soam como uma verdade tangível e insuportável. Ahmed, contudo, não perde sua dignidade e sua determinação — e, de algum modo, sua esperança.
O que começou em 2010 como um projeto do diretor Andrew McConnell sobre o surfe em Gaza evoluiu a um documentário sobre a população que vive à beira-mar, quando conheceu seu colega cineasta Garry Keane. Então, com os massacres de Israel contra o território palestino em 2014, que McConnell também documentou, o projeto voltou a assumir uma nova forma.
“Conseguimos algum dinheiro para o projeto do Irish Film Board [hoje Screen Ireland], e retornamos juntos em 2015”, explicou McConnell. “Encontramos novos personagens e desenvolvemos ainda mais nosso projeto, pensando: por que nos confinar às pessoas que vivem à beira-mar e não fazer um filme que busque a essência da Faixa de Gaza?”
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Certamente é o que é: uma colagem cinematograficamente bela, comovente, embora repleta de tragédias e angústias; um retrato da vida de cerca de uma dúzia de cidadãos palestinos. Juntas, suas histórias dão um novo sentido à experiência coletiva de outras 2.4 milhões de pessoas forçadas a enfrentar um desastre produzido pelo homem.
Na vida de cada um dos personagens, há espaço para rir e amar, junto de suas famílias e seus amigos — frestas de um cotidiano universal com o qual o público é capaz de se identificar. Contudo, o cenário é devastador: infraestrutura destruída, miséria por toda parte e marginalização. Há também um belíssimo mar. Momentos íntimos e tocantes, vez e outra, são eclipsados pelo impacto corrosivo dos ataques de Israel e pelos então 12 anos de bloqueio impostos em colaboração com o Egito.

Palestinos em uma praia do Mediterrâneo, no filme Gaza de 2019 [Reprodução]
A câmera então registra a mesma mãe dirigindo pela orla, ensimesmada, à medida que ouvimos seus pensamentos: “Não importa as dificuldades que enfrentamos lá atrás, eu jamais imaginei que seria assim — tão terrível. Toda noite, quando Karma e suas irmãs estão dormindo, sento-me a seu lado e passo a mão em seu cabelo. Penso se fui justa em lhes dar à luz, em trazê-las aqui. Como pude deixar que minhas meninas passarem, tão jovens, por três guerra?”
O filme documenta as tensões de um dos momentos mais desafiadores do enclave até então, desde os 50 dias de bombardeio israelense em 2014 à resposta violentíssima, e mesmo letal, das forças ocupantes aos civis que protestavam pela Grande Marcha do Retorno, na cerca nominal entre o enclave e a Palestina histórica.
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Ibrahim, paramédico, esteve na linha de frente dos protestos e tratou centenas de civis feridos. Sua vida é uma vida de sacrifício e cuidado por sua gente, em busca de reaver seus direitos legítimos.
“Os jovens estão sacrificando tudo pela liberdade”, relata Ibrahim. “E enquanto houver ocupação, não vão parar. É nosso dever cuidar deles”.
Ibrahim observa também o enorme fardo que Israel impõe à sociedade palestina como um todo, sobretudo em Gaza, à medida que destrói toda uma geração por meio de sua política declarada de “atirar para mutilar”.
Acabam perdendo seus membros. Jovens fortes que tem muito a contribuir para sua comunidade … Os jovens estão arruinados, e a sociedade palestina, como resultado, está sendo destruída.
Enquanto fala, a câmera mostra um manifestante de muletas, desequilibrado ao tentar atirar uma pedra contra os soldados com seu estilingue, através do muro fortificado. A imagem de sua determinação desesperada é bastante eloquente.
Karma, uma menina inteligente que encontra consolo em tocar seu violoncelo à beira-mar, lamenta que o Ocidente “enxerga apenas o que quer ver”.

Artista palestina toca violoncelo em meio às ruínas, no filme Gaza de 2019 [Reprodução]
Gaza transmite a solidão e a vulnerabilidade da população do enclave. Seu isolamento contínuo depende inteiramente da cumplicidade das potências ocidentais, apesar de o cineasta reconhecer que muitos das pessoas de Gaza se sentem abandonadas mesmo por seus conterrâneos em Israel, na Cisjordânia e na diáspora.
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“Havia um sentimento de que eles seriam os únicos carregando o fardo da resistência; de que a resistência viria sobretudo de Gaza e de que a Cisjordânia, quem sabe, havia desistido”, explicou McConnell. “Muitos sentem que carregam o maior peso”.
Embora um filme dessa natureza seja fadado a ser intenso e exigir muito das emoções de público, muitas das interações gentis e bem-humoradas entre os personagens são, de fato, tocantes e positivas. Há uma cena que consegue até mesmo fazer seu público rir, muito embora McConnell admita ter pensado duas vezes antes de inclui-la.
Um dos protagonistas é um menino chamado Ahmed, na época, com 14 anos de idade, que sonhava ser um pescador como muitos dos homens de sua família. Sua vida girou sempre em torno do mar. A certa altura conhecemos seu pai, um pescador, que afirma ter 40 filhos de três esposas. O homem relata à câmera ter cogitado celebrar o quarto casamento, mas pensou que já havia espaço para mais uma esposa e mais crianças. Em seguida, diz ter 20 — ou talvez 22? — filhos na escola e, com a ajuda de um pedaço de papel, como uma chamada, lista todos eles.

Crianças palestinas posam para uma foto, no filme Gaza de 2019 [Reprodução]
Gaza integrou o catálogo do Festival de Cinema Palestino de Londres, entre 15 e 30 de novembro de 2019. Para McConnell e Keane, é uma obra fundamental para encorajar uma compreensão maior do público ocidental sobre a humanidade palestina. A dupla participou de exibições de estreia em Nova York e Harvard. Segundo McConnell, com uma recepção e um engajamento fantástico do público, ao proporcionar um “diálogo realmente necessário e saudável”.
McConnell insiste que o público ocidental se mantém curioso sobre sua obra, embora grandes distribuidoras tenham se recusado a distribui-la. “Foi difícil leva-la ao público dos Estados Unidos, após sua estreia em Sundance. Por alguma razão, todas as redes e emissoras nos rejeitaram — Netflix, Amazon Prime, HBO e assim por diante. O Netflix alegou, por exemplo, que não achava que esse filme teria audiência, mas todas as suas exibições continuaram lotadas e o interesse não minguou”.
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Neste entremeio, McConnell e sua equipe recorreram a redes de base para exibir seu filme em todo o país, como forma de ressaltar a urgência de sua mensagem. “Estamos focados nisso. Queremos mais e mais exibições nos Estados Unidos. Sentimos que é o país que mais precisa ver essa obra”.
McConnell confirmou que muitos daqueles que têm uma resposta positiva sobre Gaza são jovens judeus americanos.
Ainda assim, a principal exibição ocorreria pouco depois, em 20 de novembro, na Faixa de Gaza. “O velho cinema de Gaza foi reformado para isso. Havia 700 assentos em seu interior e outros 700 do lado de fora. Esperávamos 1.500 pessoas”.
Mais do que tudo, concluiu o diretor, seria maravilhoso se reconectar com todos e ver sua resposta aos registros daquela jornada que compartilharam. “Não tenho palavras para expressar o quão incrível seria me sentar com eles e assistir juntos ao filme”, disse o diretor na ocasião.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês pelo Monitor do Oriente Médio, em 12 de novembro de 2019.