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O intento de golpe na Bolívia: Junho de 2024, militares e bloqueio do sistema político

Autoridades bolivianas prendem ex-chefe do exército, Juan José Zuñiga, após fracassar sua tentativa de golpe, em La Paz, Bolívia, 26 de junho de 2024 [Ministério do Governo da Bolívia/Divulgação/Agência Anadolu]
Autoridades bolivianas prendem ex-chefe do exército, Juan José Zuñiga, após fracassar sua tentativa de golpe, em La Paz, Bolívia, 26 de junho de 2024 [Ministério do Governo da Bolívia/Divulgação/Agência Anadolu]

A Procuradoria Geral da Bolívia acusou formalmente os ex-comandantes das Forças Armadas (FFAA) Juan José Zúñiga, Juan Arnez e Edison Irahola pelos crimes de terrorismo e levantamento armado contra a segurança e soberania do Estado, por sua tentativa de golpe na quarta-feira, 26 de junho. Na sexta, 28 de junho, o ministro de Governo, Eduardo del Castillo, informou que a Polícia Nacional prendeu quatro militares ligados à tentativa de golpe de Estado, elevando para 21 o número de agentes fardados detidos neste caso.

O general Zuñiga foi o rosto visível de uma tentativa de assalto à Grande Casa do Povo, localizada no Palacio Quemado, na Praça Murillo, no centro de La Paz, capital do país de maioria indígena e governado pelo presidente Luis Arce. Na manhã de 26 de junho, uma tanqueta —carro de combate com rodas e não lagartas — acompanhado de ao menos três pelotões da Polícia Militar — subordinada ao exército — tentaram condicionar o poder político.

O ex-comandante em chefe do Exército boliviano havia sido retirado de seu cargo na segunda-feira, 24 de junho, por haver ameaçado um golpe de Estado se e caso o ex-presidente Evo Morales voltasse ao Poder Executivo. Evo está impedido pela Justiça do país de concorrer novamente e opera um racha no partido de governo, o Movimento ao Socialismo (MAS), chegando ao cúmulo de convocar congressos paralelos. Na prática, hoje o MAS-IP tem duas organicidades, uma liderada pelas instâncias do partido ligadas ao governo Arce e outro, leal ao presidente deposto por um golpe de Estado em outubro de 2019.

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As motivações externas do intento de golpe de 2024 são mais evidentes do que as entranhas da política boliviana. A direita local está rachada entre os sucessores do ex-presidente Carlos Mesa — candidato derrotado em 2019 e um dos pilares do golpe daquele ano — e a lealdade aos oligarcas do Departamento de Santa Cruz, a força motriz do agronegócio e da concepção colonial do país. Fernando Camacho, ex-candidato por Santa Cruz e com inclinações fascistas está preso, e a ex-presidenta ilegítima Jeanine Añez também, além de outros conspiradores destituídos do poder pela rebelião popular entre outubro de 2019 a outubro de 2020, quando Luis Arce foi eleito em primeiro turno, com mais de 55% dos votos.

O governo Arce estava em uma situação delicada até o momento do golpe. O câmbio paralelo elevou o volume de evasão de divisas e há uma escassez de dólares circulando. A moeda opera como reserva no país, para o consumo das famílias e movimentação das empresas, o que dificulta as importações. Ainda que o país tenha autossuficiência em produção de alimentos, há certa carência de produtos importantes. O mesmo ocorre com o problema do gás veicular. O paradoxo é que o país que exporta gás natural não está conseguindo garantir o abastecimento do principal combustível para o setor de transportes, que é todo privado, mas com pequenas e médias empresas cooperativas. Este seria o desenho interno da política boliviana nestes meses pré-golpe, derrotado em junho de 2024.

Os fatores externos: Lítio, Elon Musk e o Comando Sul

Segundo reportagem do jornalista chileno Mauricio Becerra, a Bolívia compartilha com o Chile e a Argentina, no chamado Triângulo do Lítio, as maiores reservas do mineral no mundo, estimadas em cerca de 23 milhões de toneladas concentradas nas salinas do sul do país. É o caso do Salar de Uyuni, onde se estima ter 17 milhões de toneladas do metal branco.

A relevância do lítio tem aumentado nos últimos anos acompanhando o crescimento da produção de carros elétricos, especialmente na China, cuja marca BYD superou a Tesla de Elon Muska nas vendas do setor em 2023. O mineral é utilizado na fabricação de baterias de alto desempenho para veículos em um contexto de mudança de matrizes energéticas. O lítio subiu de preço nas últimas décadas, passando de US$5 mil por tonelada de carbonato de lítio em 2010 para mais de US$80 mil dólares em 2022.

Em 2017, ainda no último governo Evo Morales, foi criada uma empresa estatal para o setor, a Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB). Um ano depois, o contrato que seria assinado com a empresa alemã ACI Systems — vendendo o mineral raro sem beneficiamento pelo período de 70 anos — foi suspenso sob pressão popular. O contrato assinado e em vigor é com o consórcio chinês TBEA-Baocheng, com grande vantagem para a Bolívia. Evidente que a disputa pelas reservas dentro do Triângulo do Lítio chama atenção do Comando Sul dos Estados Unidos, conforme já escrevemos a respeito.

Seguindo as orientações da generala Laura Richardson, é do interesse dos Estados Unidos o controle sobre as reservas estratégicas. Houve — e segue havendo — troca de acusações entre o ministro de governo Marcelo Montenegro e a encarregada de negócios estadunidense, Debra Hevia. Considerando que a embaixada dos Estados Unidos demorou a se pronunciar condenando o intento de golpe de Estado, se torna mais que evidente a leniência do Império decadente diante de mais essa manobra para instabilizar o país.

Egito e Bolívia: comparando os modelos de golpes de Estado

Em janeiro de 2011, a praça dos Mártires, ou Praça Tahrir no Cairo, concentrou uma rebelião popular onde os sindicatos egípcios, estudantes — uma juventude escolarizada e desempregada — e as enormes bases sociais da Irmandade Muçulmana derrubaram um regime nefasto. O então presidente Hosni Mubarak — vice do traidor Anwar Al Sadat, justiçado outubro de 1981 — tentava se perenizar no poder, indicando seu filho como possível sucessor. Os militares egípcios, a nefasta geração que envergonha o exército de Mohamed Naguib e Gamal Abdel Nasser, queriam garantir o acesso a ajuda militar dos Estados Unidos, o “prêmio” pela traição a causa árabe e o abandono da Palestina.

O processo de luta popular egípcia levou a uma eleição, onde o engenheiro e professor universitário Mohamed Morsi ganhou o pleito pelo Partido da Liberdade e da Justiça, em junho de 2012, deposto pelos militares detentores dos fundos estadunidenses em julho do ano seguinte. Desde então, entre golpes e eleições fraudadas, o general Abdel Fattah al-Sisi está no seu “terceiro mandato”, e segue dividindo o botim de US$1,3 bilhão de dólares entre seus oficiais golpistas e o aparelho repressivo interno. Morsi foi “suicidado” na prisão em junho de 2019 e o Egito se vê na encruzilhada entre a adesão aos Brics e a miséria da traição.

Na brevíssima comparação entre os fenômenos do Egito e da Bolívia está o interesse dos Estados Unidos. No caso do país árabe, está a fronteira egípcia no Sinai e a proposta nefasta para construir uma cidade “palestina”, sitiada, com os exilados de Gaza. Já os golpes bolivianos, em 2019 e 2024, têm como motivação externa o controle das reservas de lítio. Em ambos os casos, além da correlação de forças internas (nacionais), a presença da inteligência estadunidense é o principal fator de instabilidade e tentativa de mudança de um regime legítimo.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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