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Garantir justiça para família palestina Abuumar, contra criminalização e xenofobia

Professor palestino Muslim Abuumar [Reprodução]

A deportação da família palestina Abuumar no último domingo, dia 23 de junho, após um calvário de três dias de detenção na área do Aeroporto Internacional de Guarulhos, acendeu o alerta de defensores de direitos humanos, juristas e advogados e de toda a solidariedade com o povo palestino: a criminalização e a xenofobia crescem no Brasil, em meio ao brutal genocídio em Gaza e à limpeza étnica avançada na Cisjordânia.

Reverter essa decisão arbitrária vai além de lutar contra uma enorme injustiça, ingerência estrangeira e precedente perigoso na fronteira brasileira. É barrar esse avanço da criminalização a partir da representação de Israel no país. Essa batalha deve ser combinada com outra que está sendo travada no Brasil: de que o governo Lula rompa imediatamente relações econômicas, militares e diplomáticas com Israel. 

Além da urgência em se tomar medidas efetivas e concretas para isolar o Estado sionista, na batalha por cessar a carnificina em Gaza, o caso da família Abuumar joga luz sobre a interferência direta da representação e entidades sionistas nos distintos espaços (universidades, parlamentos, órgãos governamentais, Polícia Federal etc.) para tentar silenciar as vozes que denunciam os crimes contra a humanidade de Israel. É preciso dar um basta nisso e dizer em alto e bom som: palestinos e palestinas são bem-vindos no Brasil, o Estado genocida de Israel que segue a afrontar inclusive a soberania nacional não. O próximo 3 de julho marcará um dia nacional de mobilização por embargo militar a Israel como um passo a mais nessa direção.

A medida desumanizante e indignante contra a família Abuumar a partir da decisão da Polícia Federal se deu, como já amplamente denunciado por especialistas, ao arrepio da Constituição Federal, de qualquer fundamentação legal e de tratados e convenções internacionais do qual o Brasil é signatário. O Direito foi subjugado por uma lista elaborada pela Terrorist Screening Center (TSC), uma organização alheia ao ordenamento jurídico dos Estados Unidos amplamente contestada por seu caráter racista, xenofóbico e islamofóbico, com nomes relacionados por sua origem étnica, opinião e afiliação política.

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O genocídio em curso em Gaza há mais de nove meses, na busca de Israel por sua “solução final” na contínua Nakba (a catástrofe cuja pedra fundamental é a formação do Estado genocida de Israel em 1948), expôs o que os palestinos vêm denunciando: à morte de mais de 47 mil palestinos, a maioria mulheres e crianças, enterra-se junto o Direito Internacional e os Direitos Humanos. Todo o sistema em que se inserem é questionado. O caso da família Abuumar é sintomático.

Lista contestada

Mais de um milhão de “suspeitos” no mundo estão relacionados na tal lista da TSC, segundo a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês). Até Nelson Mandela integrou a lista, como “terrorista”, por sua luta contra o apartheid na África do Sul, que lhe custou 27 anos de prisão.

A ACLU foi constituída para fazer frente a ataques a liberdades democráticas no bojo da ideologia difundida nos EUA do medo da “ameaça comunista” nos primeiros anos pós-Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os inimigos internos são ressignificados conforme o interesse político em determinada conjuntura. Neste século se amplifica como o árabe malvado e o islâmico, na construção orientalista de um Oriente inventado de bárbaros, atrasados, afeitos à violência por natureza e que, portanto, não podem tomar seus destinos nas suas mãos, ante um Ocidente de lógicos, racionais, avançados, civilizados.

O pensamento e o discurso orientalistas, reproduzidos dia a dia pela chamada grande mídia, são determinantes para que, em meio à violência de uma nova fase da contínua Nakba, se permita desde a fronteira brasileira que as vítimas sejam criminalizadas, perseguidas, silenciadas, deportadas.

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Embora o Brasil siga a determinação do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e não considere corretamente o Hamas como “terrorista”, apoiar a resistência palestina – legítima sob todos os meios, diante da ocupação, colonização, apartheid e limpeza étnica, conforme resoluções da ONU e Direito Internacional – foi o tal “fundamento” da Polícia Federal para colocar um carimbo de “suspeito” na testa de Muslim e deportá-lo, junto com sua família.

Não bastasse a ilegitimidade que escancarou a ingerência estrangeira em franca violação à soberania nacional, um argumento xenofóbico foi a cereja do bolo: a esposa grávida de sete meses levantaria suspeitas de que teriam vindo para que ela tivesse o filho no Brasil e, assim, obtivessem a naturalização. Não apenas isso não seria crime, como vale lembrar que a família tinha visto obtido um mês antes e passagem de volta comprada para 9 de julho. Muslim é professor universitário, com atividades reconhecidas na Malásia na luta por direitos humanos e justiça para seu povo. Mas tudo isso foi inebriado pelo racismo, que se sobrepôs.

Exportação do apartheid sionista

A família palestina foi, assim, impedida do direito de visitar e abraçar seus familiares que vivem no Brasil. Durante um protesto no Aeroporto Internacional de Guarulhos no último domingo, dia 23 de junho, contra a decisão arbitrária, chamado pela Frente em Defesa do Povo Palestino de São Paulo, os ativistas estiveram ao lado do irmão de Muslim e sua família. Foi doloroso ver o filho pequeno carregando um caminhãozinho de brinquedo que queria entregar para seu primo, impedido pela deportação do encontro e privado da alegria que o esperava.

Ativistas pró-Palestina se juntam a Omar Habib (centro), irmão de Muslim Abuumar, professor palestino deportado pela Polícia Federal, em protesto no aeroporto de Guarulhos, em 23 de junho de 2024 [Reprodução]

Foi impossível não lembrar de duas entradas negadas na Palestina ocupada, em 2011 e 2015, em que também esse direito foi me arrancado e da minha própria família palestina. Israel usou o mesmo argumento: que eu era ameaça a sua segurança, o que é esperado de um regime colonial e de apartheid. Essa segregação está sendo exportada para o mundo e chegando ao Brasil. Isso precisa ser urgentemente reparado, e as vozes por justiça e em defesa do povo palestino devem se elevar ainda mais.

O irmão de Abuumar nos contou no aeroporto que seu filho e sobrinho choravam, separados na fronteira, cada um em seu lado, dentro do Brasil. Lembrei imediatamente de meu pai no Brasil e meu tio na Palestina ocupada, de suas lágrimas diante da injustiça e racismo que nos roubou até mesmo o abraço quando recebi o carimbo de “entrada negada”, juntamente com o ativista e irmão árabe Mohamad el Kadri.

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Meu tio faleceu meses depois, o abraço não poderá ser recuperado. Meu pai, sobrevivente da Nakba de 1948, não pôde enterrar seu irmão, assim como não pôde antes enterrar sua mãe. No ano passado, aos 88 anos, faleceu com a tristeza do refugiado no olhar; não pôde sequer ser enterrado em sua terra. “Filha, se eu pisar na minha terra e morrer, morro feliz”, dizia a mim, já com idade bastante avançada.

A colonização e ocupação sionista nos roubou a terra, as vidas, os encontros, os abraços. E segue a nos usurpar, dentro e fora da terra onde remontam nossas raízes, a Palestina. Inclusive nas portas do Brasil, como agora com a família Abuumar.

As portas que bateram na cara de uma mãe grávida de sete meses (que chegou a passar mal e ter que ser levada a hospital), de um pai, de uma criança de seis anos e uma idosa, ao final, bateram na cara de cada palestino e palestina. Nossa dor, histórias e memórias são coletivas.

À família Abuumar reiteramos o compromisso feito no aeroporto: a luta contra mais essa injustiça vai continuar. Como diz a letra da canção de Chico Buarque, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Resistimos, persistimos, até a Palestina livre do rio ao mar.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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