O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo que ninguém tivesse dito nenhuma palavra. Mais uma vez estava percebendo a linguagem sem palavras, a Linguagem Universal. (Coelho, 1988)
Chegamos na Índia conhecendo apenas uma palavra no idioma local: “Namastê”. Esta palavra é frequentemente traduzida como “o deus que habita em mim saúda o deus que habita em você”. Na verdade, a tradução dessa palavra é um pouco mais complexa. “Namastê” tem origem no sânscrito e é formada por duas partes: “namas”, que significa “reverência” ou “saudação”, e “te”, que significa “a você”. Literalmente, “namastê” se traduz como “reverência a você”. Embora a tradução literal não mencione diretamente o conceito de um “deus interior”, a interpretação de “namastê” vai além das palavras.
Em muitos idiomas antigos como o sânscrito ou o grego antigo, as palavras carregam significados que transcendem suas traduções literais. Elas representam conceitos complexos e profundos. Por exemplo, a palavra “democracia” vem do grego antigo “dēmokratía”, combinando “dêmos” (povo) e “krátos” (poder ou governo), significando literalmente “governo do povo”. Podemos dizer que muitos governos em nosso mundo atual são democráticos, mas se aplicarmos, o conceito de democracia dos antigos gregos teríamos um sistema complexo de governança em que os cidadãos têm o poder de escolher seus líderes e participar na tomada de decisões. Ao que parece, nem mesmo os gregos antigos compreendiam tal conceito, já que sua própria “democracia” era tão excludente, xenofóbica e misógina quanto as nossas democracias dos tempos modernos e contemporâneos.
Assim como a “democracia” grega, o “namastê” indiano pode ser compreendido de forma mais rica como uma expressão que reconhece e honra a divindade ou a essência espiritual presente em cada pessoa. Assim, a ideia de que “o deus que habita em mim saúda o deus que habita em você” capta a profundidade e a espiritualidade que é transmitida na saudação indiana.
Essa longa introdução se faz necessária para explicar que existe um idioma muito mais poderoso e abrangente que o grego antigo ou o sânscrito. Uns diriam ser o inglês, não é o nosso caso, já que também não falamos mais do inglês do que falamos do hindi.
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Quando compramos nossa passagem para a Índia, a primeira questão que nos indagamos foi: como nos comunicar? Não haveria problemas, pois conhecíamos uma linguagem que Paulo Coelho, no livro O Alquimista, chamou de linguagem universal.
A comunicação é um processo que envolve vários elementos: o emissor, que é quem envia a mensagem; a mensagem, que é o conteúdo a ser emitido; o código, que é o sistema de sinais ou símbolos escolhidos pelo emissor para codificar a mensagem; o canal, que é o meio pelo qual a mensagem é enviada; e o receptor, que é quem recebe a mensagem. No entanto, há um outro componente fundamental que muitas vezes é ignorado: a decodificação. Por mais que todos os elementos do processo estejam corretos, se o receptor não estiver disposto a decodificar a mensagem ou se a decodificar com falhas, todo o processo de comunicação é comprometido. Isso é semelhante a assistir a um filme e não compreender nada do que ele quer transmitir.
Na Índia, a barreira linguística poderia ter sido um obstáculo significativo, caso não tivéssemos familiaridade com a “linguagem universal”. Esta ideia é explorada pelo autor Paulo Coelho, que a menciona de forma metafórica, capturando um conceito profundo. A “linguagem universal” refere-se à capacidade de compreender e se conectar com o mundo ao nosso redor de maneiras que transcendem as palavras. Paulo Coelho utiliza a metáfora para ilustrar como uma pessoa pode estar aberta a captar sinais e sentimentos de seu ambiente, sejam eles comunicados verbalmente por outros ou expressos de forma mais sutil pela sociedade e pela natureza. É a sensação intuitiva de perceber quando um lugar parece perigoso ou quando se é calorosamente bem-vindo. Essa compreensão não depende apenas da fala, mas de uma sensibilidade mais ampla à energia e ao contexto ao nosso redor. E foi essa compreensão que nos guiou em nossa jornada e nos ajudou a nos conectar com as pessoas e o ambiente em nossa jornada pela Índia.
No segundo dia em Nova Deli, estávamos na estação de trem aguardando o transporte que nos levaria até Vrindavan, uma cidade famosa por ser, segundo a tradição, o local onde Sidarta Gautama, o Buda, viveu durante a infância. A estação estava repleta de pessoas, um verdadeiro mar de rostos, histórias e linguagens próprias. Em meio à multidão, avistei um senhor vestido inteiramente de branco, com uma longa barba e cabelos igualmente brancos, que lhe conferiam uma aparência quase mística. Sua figura me lembrou a imagem de um sábio mago das histórias de J.R.R. Tolkien. Havia algo em seu olhar que me fez sentir uma conexão instantânea. Seus olhos diziam que ele estava tão disposto a se comunicar quanto eu. Embora não compartilhássemos um idioma comum, compartilhávamos uma linguagem comum. É bom observar que se comunicar com um mago também não deve ser tão difícil assim.
— Namastê! Eu disse.
Ele respondeu com a mesma palavra, saudando o “deus que habita em mim”.
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Como eu não falava hindi nem inglês, a comunicação seria precária, já que aquele senhor também não falava inglês ou português. Entre mímicas, olhares, toques de pele, entonação de voz e gestos sutis com a cabeça, aquele senhor me disse que estava encantado com as minhas tatuagens e mencionou que, em seu país, é comum que as tatuagens representem simbolismos religiosos. Ele me contou que, embora estivesse em Nova Deli, vivia em um vilarejo distante e estava ali para uma consulta médica, mas agora estava voltando para casa.
Enquanto conversávamos, uma multidão de indianos que também aguardavam o transporte — talvez para suas casas, talvez para consultas médicas, talvez para visitar familiares ou diversas outras coisas — se reuniu ao nosso redor. Todos observavam a maneira como nos comunicávamos; alguns riam, alguns ficavam assustados, outros apenas curiosos. No fim, todos estavam interessados na forma inusitada com que um estrangeiro e um velho mago de um vilarejo com seu próprio dialeto conseguiam se comunicar.
Contei ao senhor que minhas tatuagens não simbolizavam religião, mas que, de certa forma, eram desenhos que me faziam lembrar de minha própria história. Disse também que, apesar de ser ateu, respeito e admiro muito sua religião, e admiramos juntos a tatuagem que ele tinha no dorso da mão, que simboliza uma homenagem ao deus Vishnu.
Passamos não mais do que quinze minutos conversando, emitindo, codificando e decodificando mensagens um para o outro. No fim, não ter um idioma verbal em comum não alterou em nada nossa conversa. Naqueles quinze minutos, pudemos aprender muito um sobre o outro e sobre a cultura um do outro. Então, quando me perguntam como conseguimos nos comunicar em um lugar onde não falamos o idioma, essa é a primeira história que me vem à mente. Às vezes, fico pensando em como, naqueles quinze minutos, pude entender tudo o que aquele senhor tinha para falar.
Muitas vezes, as pessoas conversam e discutem por horas sem realmente se entenderem, pois estão mais focadas em falar do que em ouvir. Elas não estão genuinamente interessadas em compreender a perspectiva do outro. Em contraste, quando duas pessoas estão sintonizadas com a “linguagem universal” — isto é, estão verdadeiramente dispostas a se entender —, quinze minutos podem ser mais do que suficientes para estabelecer uma conexão profunda e significativa.