O caminho para a liberdade: Um recorte de Hollywood sobre Mandela e o apartheid

Na África do Sul sob o regime de apartheid, o casamento entre brancos e negros era absolutamente proibido e havia uma série de empregos que só poderiam ser exercidos por indivíduos brancos. Diversas áreas foram, com o tempo, arbitrariamente denominadas como exclusivamente brancas e a população negra que ali residia foi forçada a se alocar em comunidades segregadas — ou bantustões. Milhares de manifestantes que denunciaram ou se objetaram a esse sistema foram encarcerados, sob tortura e mesmo assassinato nas prisões.

Foi Nelson Mandela quem liderou a árdua luta para libertar o país de tamanha segregação racial. No longa-metragem Mandela: Long Walk to Freedom — lançado no Brasil como Mandela: O caminho para a liberdade —, de 2013, dirigido por Justin Chadwick, o conhecido ator britânico Idris Elba protagoniza uma abrangente crônica da vida do líder sul-africano, desde o início de sua carreira como advogado em Johanesburgo, passando por sua adesão às fileiras do Congresso Nacional Africano (CNA) e a criação de seu braço armado, até seus 27 anos na prisão e, enfim, sua eleição como primeiro presidente negro da África do Sul.

 

Embora a estrutura cronológica da narrativa cubra os principais eventos da biografia de Mandela, a escolha torna a experiência de assistir a essa obra ligeiramente arrastada. Essa versão adaptada ao cinema da autobiografia de Mandela, publicada em 1995, Long Walk to Freedom — em português, Longa caminhada até a liberdade —, perpassa os acontecimentos chaves da história, muito embora não retrate, na totalidade, a brutalidade do sistema de apartheid, tampouco os governos ocidentais que lhe deram apoio.

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Um exemplo: apenas uma cena breve se dedica a Mandela e outros membros do CNA embarcando em um vagão exclusivamente branco de um trem segregado, como protesto, para serem então expulsos por guardas brancos. O filme tampouco menciona, convenientemente, o papel crucial da inteligência dos Estados Unidos na prisão de Mandela, em 1962, ou o fato de que o líder sul-africano se manteve classificado como “terrorista” até meados dos anos 2000.

Ator Idris Elba durante a première de Mandela: Long Walk To Freedom, no Festival do Instituto de Cinema Americano (AFI FEST), no Teatro Egípcio, em Hollywood, na Califórnia, Estados Unidos, em 10 de novembro de 2013 [Kevin Winter/Getty Images for AFI]

Em contrapartida, o filme faz bem em não recriar um retrato perturbador do massacre de Sharpeville, no ano de 1960, quando a polícia do apartheid abriu fogo contra manifestantes desarmados em frente a uma delegacia na pequena cidade sul-africana, deixando ao menos 69 mortos.

Quanto aos personagens em si, não fica claro o que é mais perturbador: a maquiagem utilizada para envelhecer Idris Elba, a fim de caracterizá-lo como uma versão mais velha de Nelson Mandela— consideravelmente mais conhecida do público — ou o fato de que o mesmo recurso pouco se aplica a sua esposa, Winnie Madikizela, interpretada por Naomie Harris, cuja aparência permanece a mesma ao longo dos 27 anos em que o líder anti-apartheid permanece na prisão.

Atores Idris Elba e Naomie Harris caracterizados como Nelson Mandela e Winnie Madikizela no set do filme Mandela: Long Walk to Freedom [Keith Bernstein/The Weinstein Company via Getty Images]

Winnie foi a segunda esposa de Mandela e também protagonista na luta pela liberdade dos negros sul-africanos em relação ao regime de apartheid. Como parte de sua luta, no entanto, o filme também cobre o período em que Winnie passou encarcerada, separada de seus filhos. Dois anos após de ser libertado da Ilha Robben, Mandela deixou Winnie. Sua terceira esposa, Graça Machel, contudo, sequer é retratada no filme.

O lançamento internacional de Long Walk to Freedom ocorreu somente 20 dias após o falecimento de Mandela. Na ocasião e desde então, suas célebres palavras, “nossa liberdade é incompleta sem a libertação do povo palestino”, se repetem esporadicamente. Mandela era um conhecido apoiador da causa por libertação do povo palestino — também sob apartheid sob o regime de ocupação colonial de Israel.

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De maneira bastante similar ao apartheid na África do Sul, cidades e aldeias palestinas nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém são seccionadas por assentamentos ilegais israelenses, estradas segregadas e rotas de ônibus exclusivas para uso judeu, além de postos de controle militar e o infame Muro do Apartheid, que corta aldeias inteiras e separa os árabes nativos de suas terras ancestrais.

Enquanto a população sul-africana era forçada a carregar cartilhas de passagem para restringir seu movimento e impedi-las de acessar áreas brancas, os palestinos da Cisjordânia, de Jerusalém e também da Faixa de Gaza são obrigados a portar documentos de identidade das áreas que lhes são designadas, ao subjugá-los a um sistema no qual Israel controla onde moram, onde trabalham e para podem ir. Palestinos de Gaza, mesmo antes de se deflagrar o genocídio a partir de outubro de 2023, viviam sob cerco, e não poderiam visitar suas famílias na Cisjordânia ou Jerusalém, separados pelo apartheid de Israel.

Protesto exibe bandeiras palestinas e sul-africanas na Praça Nelson Mandela de Ramallah, em apoio à denúncia da África do Sul contra o genocídio israelense em Gaza ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, em 10 de janeiro de 2024 [Issam Rimawi/Agência Anadolu via Getty Images]

Apesar de suas falhas, naturais de uma obra de 141 minutos incumbida de retratar um período e temas tão grandiosos, Long Walk to Freedom, de Justin Chadwick, é uma lembrança de que a opressão ainda existe em todo o mundo e uma forma de celebrarmos o que a humanidade pode conquistar uma vez que lutemos contra as injustiças que insistem em nos assombrar.

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