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Abu Haraz: Fantasmas de uma aldeia destruída por promessas de prosperidade

Sudaneses observam as ruínas da aldeia de Amri, a norte de Cartum, destruída junto de outras comunidades ribeirinhas da bacia do Nilo para construção da represa de Merowe, em 3 de março de 2007 [Khaled Desouki/AFP via Getty Images]

Quando a barragem de Merowe foi construída, na bacia hidrográfica do Nilo, em território do Sudão, a vida dos residentes da pequena aldeia de Abu Haraz mudou para sempre.

Na comunidade de Abu Haraz, no norte do país, a vida parecia seguir sem grandes empecilhos. Pescadores conduziam seus negócios, como de costume, entre as palmeiras ancestrais à margem do rio Nilo. Mulheres preparavam pão a suas famílias e vizinhos, no tradicional estilo árabe, em um forno a céu aberto. Irmãos e irmãs brigavam e brincavam nas águas do rio.

No entanto, desde a conclusão das obras da barragem de Merowe, em março de 2009, tudo isso deixou de existir. Os barcos de pesca e os fornos a céu aberto foram submergidos a 35 metros de água, graças ao lago artificial que inundou a comunidade e expulsou os habitantes de suas casas.

Obras da barragem hidrelétrica de Merowe, na bacia hidrográfica do rio Nilo, a cerca de 350 km a norte de Cartum, em 14 de agosto de 2007 [Isam Al-Haj/AFP via Getty Images]

Por sete anos, o cineasta polonês Maciej Drygas acompanhou a vida cotidiana da comunidade que vivia ali, enquanto lutavam contra seu despejo, apreensivos com uma violenta expulsão de suas terras ancestrais e com o vazio que isso deixaria em sua identidade coletiva. O produto desses registros é um abrangente testemunho audiovisual de uma terra que foi varrida do mapa e não existe mais.

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Abu Haraz — documentário de 72 minutos de duração que recebeu o mesmo nome da aldeia — estreou no Clube Frontline de Londres, no Reino Unido, em uma segunda-feira, 19 de maio de 2014, com uma conversa com o diretor, como parte da programação da 12ª edição do Festival de Cinema Polonês — Kinoteka.

 

Ao longo do documentário, os moradores da aldeia falam pouco, mas quando o fazem se expressam de maneira profundamente poética e reflexiva. Sua linguagem, combinada com longas cenas e um ritmo lento, tornam o filme quase um sonho — ou melhor dizendo, um fragmento de memória.

“Eu sonho com fantasmas que vem me visitar e começam a se queixar”, comenta um dos moradores. “Eles dizem que nossa aldeia logo vai ficar deserta e que será impossível viver aqui. Eu pergunto por quê? Eles dizem que a água vai inundar toda a área. De repente, um dos fantasmas voa em minha direção. Então eu acordo”.

Ruínas da aldeia de Um Klet, a norte de Cartum, destruída junto de outras comunidades ribeirinhas da bacia do Nilo para construção da represa de Merowe, em 1º de julho de 2004 [Yves Gellie/Gamma-Rapho via Getty Images]

Em uma das cenas, homens com vestes brancas tradicionais da região do Nilo, chamadas de jalabiyas, e turbantes também brancos se reúnem em torno de um alto-falante, que fala, entre os ruídos do instrumento, da importância do rio para a população e toda a sua história. Ainda assim, apesar de seu claro apego às terras e às águas da região, a comunidade de Abu Haraz é deslocada à força para um outro território, nada familiar, que simplesmente não é sua casa.

Um dos segmentos mais perturbadores dos registros em questão mostra alguns moradores da aldeia demolindo suas próprias casas para assegurar, ao menos para si mesmos, que não há para onde voltar.

“No entanto, vou me lembrar de cada uma das casas e de cada uma das palmeiras enquanto eu viver”, reitera um dos membros da comunidade ribeirinha. “Mesmo que eu fique cego, vou encontrar este lugar — este lugar é o meu lar”.

No novo vilarejo de Wadil El-Muqqadam, a comida é estranha e tudo parece artificial, fora do lugar. Um residente não sabe para qual direção realizar suas orações ou mesmo como encontrar as estrelas para saber as estações do ano ou momento correto para cultivar a terra. “Em Abu Haraz”, diz o homem, “eu sabia quando plantar pela constelação do Escorpião”.

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Muito embora a represa de Merowe tenha sido construída sob a promessa de dobrar o fornecimento de energia elétrica para o Sudão, a comunidade jamais viu seus benefícios, concentrados na capital Cartum e em outras grandes cidades, no intuito de robustecer o setor comercial do país.

Abu Haraz é uma história de tradição, memória e cultura versus poder e dinheiro. É também uma história de dor, perda, desespero e deslocamento de toda uma comunidade cujas vidas dificilmente chegaram aos noticiários.

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