A seguir, analisarei rapidamente dois episódios que ocorreram esta semana e que simbolizam muito bem o que tem sido a cobertura da imprensa brasileira dos conflitos na Ucrânia e em Gaza.
Na segunda-feira (8), um míssil atingiu o hospital infantil Okhmatdyt, em Kiev, causando grande destruição e deixando dezenas de mortos. O governo ucraniano acusou a Rússia de ter realizado o ataque, enquanto os russos disseram que a explosão se deu após a queda de um míssil terra-ar do próprio sistema antiaéreo NASAMS, fornecido pela Noruega à Ucrânia.
A TV Globo noticiou o caso por 2 minutos e 42 segundos na edição do mesmo dia do Jornal Hoje, cravando que foi um “ataque russo”, nas palavras da reportagem. Abrindo o tema, o âncora César Tralli afirmou que a Rússia havia lançado dezenas de mísseis contra a Ucrânia naquele dia e que, em Kiev, o ataque atingiu um hospital infantil. Em seguida, uma reportagem de Leonardo Monteiro, correspondente em Lisboa, exibiu imagens do míssil caindo sobre o local, da destruição causada, de pessoas desesperadas e de crianças pacientes que haviam sobrevivido.
Enquanto exibia as imagens, na reportagem foram apresentadas as declarações de um civil e de uma moradora sobreviventes, do ministro da Saúde da Ucrânia e do presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, acusando os russos. “A Rússia vem negando que atinge civis”, informou, mais tarde, o repórter, ao citar também o ministro da Defesa em Moscou, negando a autoria do ataque.
O Jornal Nacional do mesmo dia também noticiou o ocorrido, durante 2 minutos e 4 segundos. Na escala do início do programa, quando são apresentados os principais assuntos da edição, a âncora Renata Vasconcellos anunciou: “Um ataque russo atinge um hospital pediátrico na capital da Ucrânia.” O tema foi anunciado novamente quando o programa entraria no intervalo. “Um bombardeio russo atinge um hospital pediátrico na Ucrânia”, anunciou o âncora William Bonner, para o próximo bloco.
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Então, na chamada para a reportagem, já no bloco seguinte, Bonner declarou: “A Rússia disparou mísseis contra a Ucrânia e atingiu um hospital infantil na capital, Kiev. O governo ucraniano anunciou que houve 36 mortes, inclusive de crianças”.
A reportagem de Ilze Scamparini, correspondente em Roma, mostrou o depoimento de uma enfermeira do hospital, as mesmas imagens dos escombros e da confusão que haviam sido mostradas no Jornal Hoje, e apresentou ainda o barulho do impacto dos projéteis, ao conceder dramaticidade à notícia. Crianças também foram mostradas sendo resgatadas. Foram citados também o ministro da Defesa da Itália e o primeiro-ministro recém-eleito do Reino Unido, Keir Starmer, para exemplificar a afirmação da repórter de que “a condenação internacional foi unânime”. Por fim, foi citado o Ministério da Defesa da Rússia, apresentando rapidamente a sua versão.
No dia seguinte, o noticiário da TV Globo continuou cobrindo o tema. O Jornal Hoje falou por 3 minutos e 10 segundos do “ataque russo”, incluindo uma reportagem de 2 minutos e 28 segundos de Leonardo Monteiro. A reportagem mostrou o depoimento do diretor do hospital infantil, que disse que 600 crianças estavam no local e dando detalhes da explosão, ao mesmo tempo que voltava a mostrar as imagens que já haviam sido expostas na edição anterior.
A chefe da missão de monitoramento de direitos humanos da ONU na Ucrânia foi apresentada como fonte especializada para embasar o entendimento de que o míssil que atingiu a escola havia sido disparado pelas forças russas. O repórter, por sua vez, apresentou também a afirmação do governo russo de que o míssil era ucraniano, porém destacou: “Sem apresentar provas.”
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O correspondente em Nova York, Felipe Santana, também informou sobre o ocorrido e sua discussão em meio a uma cerimônia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), citando ainda as posições do embaixador russo e do embaixador ucraniano na Organização das Nações Unidas (ONU). Ademais, foram apresentadas as declarações do presidente Zelensky e do Itamaraty. O que chamou mais a atenção, contudo, foi a distorção do contexto da fala do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que, em visita ao presidente russo, Vladimir Putin, em Moscou, disse que “a morte de crianças inocentes na guerra é dolorosa e aterrorizante”, deixando a entender que esta foi uma crítica direta de Modi a Putin, o que não parece corresponder com o verdadeiro tom da mensagem, uma vez que o encontro dos dois líderes foi amigável e caloroso.
Na noite de 9 de julho, o Jornal Nacional apresentou apenas uma nota coberta de 37 segundos sobre o tema, destacando que “o Kremlin declarou, sem apresentar provas”, que não foi o responsável pela tragédia, mas sim o próprio sistema antimísseis ucraniano.
O Jornal Hoje do dia 10 de julho não abordou mais o tema, mas o Jornal Nacional daquela noite ainda citou rapidamente o acontecido, mostrando as imagens da destruição enquanto falava sobre a reunião dos membros da OTAN, com falas do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e de Zelensky, contra a Rússia, mas sem citar verbalmente o episódio do hospital infantil.
Nos jornais, o tema mereceu uma matéria do Estadão, duas da Folha de S. Paulo e quatro páginas d’O Globo.
Enquanto a explosão no hospital infantil de Kiev ocorria e merecia, como vimos, considerável destaque na imprensa brasileira, uma tragédia semelhante ocorria em Gaza. Na terça-feira (9), um bombardeio matou ao menos 31 pessoas, incluindo oito crianças na Escola al-Awda, em Abasan al-Kabira, no leste de Khan Younis. As autoridades palestinas apontaram responsabilidade de Israel. As autoridades em Tel Aviv admitiram o ataque, mas justificaram a ação, como de praxe, ao afirmar que o alvo seria um militante do Hamas.
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O Jornal Nacional do dia anterior havia veiculado uma nota de 23 segundos sobre uma “ofensiva de Israel em Gaza” em que o “grupo terrorista Hamas” havia acusado Tel Aviv de causar cerca de 40 mortes. Como o jornal não deu nenhum detalhe sobre a notícia, não é possível saber se já estava falando do ataque à escola — uma vez que, naquele momento, o dia 9 já começava a amanhecer em Gaza — ou se estava se referindo a mais outro ataque conduzido pela ocupação.
O Jornal Hoje do dia 9 não citou o ataque, bem como o Jornal Nacional. No dia 10, o Jornal Hoje voltou a silenciar sobre o bombardeio, e o Jornal Nacional também.
Por sua vez, os três principais jornais impressos noticiaram o ocorrido em Gaza. A Folha publicou uma matéria em seu site no dia 9, mas sem se referir a Israel no título (“Ataque aéreo atinge campo de deslocados no sul da Faixa de Gaza”) e citou o ataque somente nos dois primeiros parágrafos de uma reportagem de 21 parágrafos. O Globo e Estadão deram a notícia apenas no dia 10. O jornal fluminense veiculou duas matérias sobre o caso, citando o responsável (Israel) em ambos os títulos. Mas o jornal paulista apenas mencionou o ataque em um intertítulo com três parágrafos, dentro de uma matéria de 19 parágrafos que informava sobre outros eventos. Nem título nem linha fina citavam Israel (título: “Ataques aéreos atingem centro de Gaza e campo de refugiados”; linha fina: “Bombardeios ocorrem enquanto mediadores se reúnem em Doha para avançar em um acordo de cessar-fogo e liberação de reféns do conflito”).
Em resumo, o ataque em Kiev mereceu mais de 8 minutos e meio de cobertura no Jornal Hoje e no Jornal Nacional, os dois principais telejornais da TV Globo, emissora mais assistida da televisão brasileira, com milhões de telespectadores. A Rússia foi veementemente responsabilizada pelo ataque e as imagens da destruição e do sofrimento causados por ele foram exibidas e reexibidas. Além disso, os três principais jornais impressos do país veicularam sete matérias sobre o incidente.
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Por outro lado, o ataque em Khan Younis, na Faixa de Gaza, ocorrido no dia seguinte, não foi veiculado pelos dois jornais da Globo. O máximo que ocorreu foi uma nota de 23 segundos que não fornece nem mesmo elementos básicos para se saber onde ocorreu o evento narrado. Os jornais impressos veicularam quatro matérias sobre esse ataque, mas apenas as duas matérias do jornal O Globo citaram o responsável (Israel) em seu título, enquanto as duas matérias da Folha e do Estadão não mencionam Israel nas manchetes e relatam o ocorrido em apenas cinco de um total de 40 parágrafos.
Esses dois eventos, ocorridos quase simultaneamente, são pequenos episódios que retratam a absoluta desproporcionalidade na cobertura da imprensa brasileira— e ocidental. Enquanto a destruição e as vítimas na Ucrânia são expostas com grande destaque todos os dias — mesmo após dois anos e meio e uma estagnação do conflito —, as de Gaza são ignoradas. Os ataques russos são sempre noticiados e ressaltados, mas os ucranianos — que ocorrem contra a população do leste da Ucrânia, há dez anos, e do oeste da Rússia — quase nunca o são. Já as (pouquíssimas) notícias sobre os ataques israelenses sempre buscam lembrar seu público que os combatentes da resistência do lado palestino seriam “terroristas” e frequentemente omitem que Israel é o agente responsável pelos crimes em Gaza.
https://www.youtube.com/watch?v=P4od72Jwijw
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