“Quando há interesses mútuos, mesmo que entre dois inimigos, e eles concordam em lidar com isso porque, no fim, todo mundo está lucrando, é algo perfeito — é exatamente o que nós queremos porque as pessoas gostam de dinheiro e é o dinheiro que manda”. Esta é a explicação que Edward Walker, ex-embaixador dos Estados Unidos no Cairo, deu à rede internacional Al Jazeera ao comentar a estratégia de seu país para utilizar o gás natural como denominador comum entre Israel e Egito, no intuito de criar um relacionamento de interdependência entre as partes.
O Egito — certa feita, um grande exportador de petróleo e gás natural — aderiu a uma série de acordos corruptos com a ocupação israelense sobre o fornecimento de insumos energéticos. É este o tema de Egypt’s Lost Power — ou o Poder Perdido do Egito, em tradução livre —, documentário lançado pelos canais da Al Jazeera em junho de 2014, ao explorar esse relacionamento e como, em último caso, são os cidadãos egípcios que pagam a conta por esses acordos.
O repórter investigativo Clayton Swisher leva seu espectador a Madrid, para conhecer o bilionário Hussein Salem — um dos arquitetos e maiores beneficiários do controverso acordo de gás natural de 2005. Salem fundou a empresa privada egípcia-israelense East Mediterranean Gas (EMG), para exportar gás natural ao regime ocupante. Salem é acusado de garantir a assinatura dos acordos por meio de tráfico de influência junto ao ex-presidente egípcio Hosni Mubarak.
A parte mais controversa do acordo é o preço, muito abaixo do valor de mercado. Em 2008, a EMG estava pagando US$1.5 milhão por unidade de gás natural. Naquele mesmo ano, o produto era vendido ao Japão por US$12.5 milhões; a Rússia exportava gás canalizado à Alemanha por um valor de US$8 a US$10 milhões por unidade.
O documentário estima que, apenas em 2008, o Egito “lucrou” US$1 milhão quando poderia ter angariado até US$770 milhões. Neste entremeio, foram os próprios consumidores egípcios que subsidiaram o acordo.
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Conhecido pela alcunha de “pai de Sharm al-Sheikh”, por encabeçar as obras de alguns dos maiores hotéis no célebre balneário do Mar Vermelho, Salem voou ao Egito durante a Revolução de 25 de Janeiro, no contexto da Primavera Árabe. Posteriormente, foi preso na Espanha, acusado de corrupção e desvio de recursos públicos, embora jamais extraditado.
O documentário analisa ainda como a economia de gás natural foi instrumental para destituir, mediante um golpe de Estado, Mohamed Morsi, primeiro presidente democraticamente eleito do Egito, filiado à Irmandade Muçulmana, substituído pelo regime militar do então chefe do exército Abdel Fattah el-Sisi.
De acordo com Hatem Azzam, ex-membro do parlamento egípcio, “essa rede de corrupção no setor de energia foi uma das principais razões pela qual líderes políticos e generais do exército decidiram dar um golpe em Morsi”.
Walker explica como Sisi era — e ainda é — visto em Washington: “Ele é atraente porque não é Morsi. Nossa preocupação sempre foi manter e sustentar o relacionamento entre Egito e Israel. Portanto, jamais nos interessou, na verdade, ver a Irmandade Muçulmana ser bem-sucedida”.
Egypt’s Lost Power recorda que, sob a presidência de Morsi, houve uma série de blecautes e cortes de eletricidade, assim como escassez de combustível — problemas atribuídos inteiramente ao governo eleito. No entanto, conforme a investigação, apenas um dia após o golpe, as filas nos postos de gasolina simplesmente desapareceram e tudo voltou ao normal, como se o general houvesse solucionado a crise do dia para a noite.
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De todo modo, a rigor dos fatos, não era como não é verdade. Hoje, a produção de gás natural do Egito ainda enfrenta problemas para suprir a demanda doméstica e blecautes e cortes são comuns. Como se não bastasse, devido às importações egípcias muito abaixo do valor de mercado, Israel possui hoje uma enorme reserva de gás natural que deseja revender ao Egito.
Não há dúvida de que a corrupção no Egito é uma questão endêmica e generalizada — algo que não começou com o golpe de 3 de julho de 2013, mas que serve de contiguidade da era de Mubarak. O que nos mostra este documentário é que há uma trajetória ascendente na vantagem assumida por um grupo de indivíduos extremamente seleto. Enquanto isso, a imensa maioria dos cidadãos egípcios ainda vive em uma situação classificada como pobreza abjeta.
Egypt’s Lost Power destaca como boa parte dos ideais que levaram os cidadãos às ruas naquele 25 de janeiro — entre os quais, transparência e responsabilidade no setor público e justa distribuição das riquezas nacionais — permanece por cumprir.
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