A cobertura da imprensa ocidental sobre a guerra civil na Síria desde 2011, em poucas palavras, é uma vergonha. Desde o início, dominou-se por ilusões e interesses escusos dos Estados Unidos e seus parceiros internacionais.
No entanto, uma brilhante reportagem do autor e jornalista Patrick Cockburn é, quem sabe, a melhor exceção à regra. Sua cobertura sobre toda a região é, de maneira geral, essencial.
Seu livro The Rise of Islamic State: ISIS and the New Sunni Revolution — traduzido para o público brasileiro com o título A Origem do Estado Islâmico: O Fracasso da ‘Guerra ao Terror’ e a ascensão jihadista (Autonomia Literária, 2018) — é um volume esclarecedor em quase as suas páginas, escrito com seu rigoroso estilo realista de jornalismo, porém com notas de empatia.
Suas várias viagens ao Iraque e à Síria nos antes que antecederam o lançamento deste livro, em 2015, junto com sua rede de contatos na região, trouxe à tona, quem sabe, o melhor relato sobre a ascensão do grupo terrorista Daesh, ou Estado Islâmico — uma organização notavelmente fanática e violenta que ganhou vida como uma espécie de sucursal da al-Qaeda.
A narrativa de Cockburn começa com os eventos de meados de 2014, quando agências e emissoras em todo mundo mostraram a um público horrorizado os meios com que o Daesh varreu um enorme território do Iraque, superando sem muito esforço o exército nacional.
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O autodenominado Estado Islâmico do Iraque e de Sham — expressão em árabe para a Grande Síria ou Levante —, conhecido também pela sigla em inglês ISIS, parecia fazer jus a sua ambiciosa alcunha, ao assumir controle de territórios estratégicos da região e alcançar até mesmo o leste e norte da Síria.
Contudo, como observa Cockburn, a derrota sempre esteve no horizonte. Conforme o autor, o exército iraquiano, com dezenas de milhares de anos, não estaria, no entanto, totalmente derrotado. Ao contrário, simplesmente não lutou. O medo gerado por uma propaganda hedionda do Daesh, junto da corrupção endêmica nas fileiras do exército, levou muitos soldados e oficiais a voltaram para a casa assim que se depararam com as forças terroristas.
A maior virtude da narrativa de Cockburn está na forma como ele reúne e prioriza dois fatores para a ascensão do Daesh: primeiro, o legado da invasão dos Estados Unidos e seus aliados, incluindo a Grã-Bretanha, em 2003, e a subsequente ocupação do Iraque; segundo, o apoio — às vezes, indireto — ao Daesh de regimes produtores de petróleo do Golfo, como Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos, além de até mesmo a Turquia, em uma determinação míope, por meios tortos, de derrubar o presidente da Síria, Bashar al-Assad.
Cockburn explica que a ocupação americana do Iraque e o subsequente desmonte do exército iraquiano levou oficiais furiosos — e muito bem treinados — a inundar fileiras de grupos militantes, então nascentes, da resistência nacional. O relato mostra que não seria necessário fazer muito para tanto, já que a maioria do exército sequer combateu a invasão, indispostos a morrer pelo ex-ditador Saddam Hussein.
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Essas políticas de ocupação, combinadas com uma estratégia de “guerra suja” adotada pelo coronel americano James Steele — veterano das guerras por procuração nos anos de 1980, na América Central — resultaram no recrutamento de esquadrões da morte, incumbidos de torturar e matar oponentes. A soma dos fatores culminou diretamente no nascimento e na metódica ascensão da al-Qaeda no Iraque — e, por consequência, no “Estado Islâmico”.
A ocupação também deixou outro legado maligno: a influência do neoliberalismo dos Estados Unidos sob George W. Bush, incentivando a corrupção. “Questionado sobre a causa da derrota do exército iraquiano [em junho de 2014], um general recentemente reformado foi enfático: ‘Corrupção! Corrupção! Corrupção!’ Tudo começou, ele disse, quando os americanos instruíram o exército iraquiano a terceirizar a comida e outros insumos em torno de 2005. Um comandante de batalhão recebia por unidade de 600 soldados, embora tivesse apenas 200 homens, e embolsava a diferença, com enormes lucros. O exército se tornou uma máquina de imprimir dinheiro para seus veteranos … Como se não bastasse, oficiais sunitas bem-treinados foram marginalizados”.
Continua o autor: “Por que a corrupção no Iraque é tão ruim? A resposta, conforme os iraquianos, é que ‘as sanções das Nações Unidas destruíram a sociedade iraquiana nos anos de 1990 e os americanos voltaram a destruir o Estado em 2003”.
Há também ponderações interessantes sobre as maquinações por trás de um conflito multifacetado que é a guerra civil na Síria, descrita por Cockburn como “cinco conflitos diferentes que infectam e deterioram uns aos outros: uma revolução popular genuína, que logo se tornou interligada com a luta dos sunitas com os alauítas; então fomentou o conflito xiita—sunita na região como um todo; somada a um impasse entre Estados Unidos e Arábia Saudita, além dos Estados sunitas, por um lado, e Iraque, Irã e o nicho xiita do Estado libanês, por outro … e enfim, uma espécie de retomada da Guerra Fria entre Moscou e o Ocidente”.
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A partir dessas guerras distintas, segundo uma fonte militar iraquiana em condição de anonimato, “a emergência do Daesh se deu com ajuda substancial, em 2011 e 2012, da inteligência militar da Turquia, que encorajou experientes oficiais iraquianos, membros possivelmente das guerrilhas contra a ocupação ocidental, a trabalharem com o grupo [terrorista]”. Cockburn, contudo, é cético e aponta para as chances de que a acusação seja “mais uma teoria da conspiração do Oriente Médio”, embora reconheça que tais grupos jihadistas tenham um histórico de manipulação por agências estrangeiras.
Ao citar uma entrevista de um ex-comandante do Exército Livre da Síria, traduzida para o inglês ao blog Brown Moses, Cockburn reafirma a extensão à qual a oposição armada estava submetida “sob os dedos de apoiadores estrangeiros ao fim de 2013”.
Em custódia do Daesh — após ter desertado a ele —, o militante sírio Saddam al-Jamal conta a seus entrevistadores, ou interrogadores, em vídeo, que suas brigadas haviam sido fundadas e instruídas pelo Catar, muito embora logo mude de versão para acusar os sauditas. Os encontros do conselho militar, conforme os relatos, tinham a presença de “representantes dos serviços de inteligência da Arábia Saudita, Jordânia, Emirados Árabes Unidos e Catar, além de Estados Unidos, Grã-Bretanha e França”.
Em um desses encontros que aparentemente ocorreu na Turquia, o então ministro da Defesa da Arábia Saudita, príncipe Salman bin Sultan, participou pessoalmente e pediu aos líderes da oposição que apresentassem suas razões para receberem armamentos e dinheiro.
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Se há uma falha no livro é o fato de que talvez recorra demais a fontes anônimas. Não obstante, considerando as circunstâncias letais que prevalecem na Síria e no Iraque, as precauções são inevitáveis e o evidente ceticismo e objetividade de Cockburn deixam o relato transparente o bastante para que os leitores julguem por si mesmos. Ademais, a quem leu a série em quatro partes do mesmo autor Al-Qaeda, segundo ato, publicada pela rede The Independent, será marcante o reuso de materiais aqui. No entanto, dada a perspicácia dessa série particularmente pioneira, não é algo ruim.
Se a análise meticulosa de Cockburn parece, por vezes, um tanto sinistra, é porque os fatos na região de fato são sinistros. Cockburn conclui ao advertir que para a ascensão rápida do Daesh como “fato político e geográfico no mapa”. Suas previsões, por assim dizer, se mostraram corretas no decorrer dos anos — se a ascensão do Daesh parecia improvável a princípio, antes do verão de 2014, de fato ocorreu, assim como eventual derrota e dissipação do grupo, embora células orgânicas permaneçam ativas.
Cockburn mantém seus alertas sobre a conjuntura em campo.