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Chipre: De antiga colônia sionista a base militar para o genocídio em Gaza

Hoje, à medida que cada vez mais países cortam relações e impõem sanções a Israel, o relacionamento israelo-cipriota continua a se fortalecer
Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, durante visita de emissários cipriotas em Jerusalém ocupada, em 14 de fevereiro de 2021 [Marc Israel Sellem/AFP via Getty Images]

Em meados de junho, em um pronunciamento à televisão, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ameaçou pela primeira vez adotar ações militares contra o Chipre caso este mantenha sua cooperação com o exército de Israel, que realiza treinamentos na nação insular para o que parece ser um iminente ataque ao Líbano.

Nasrallah não mediu palavras: “Abrir aeroportos e bases cipriotas ao inimigo israelense para atacar o território do Líbano implicaria o governo do Chipre como parte da guerra e a resistência lidará com isso como parte da guerra”.

De fato, o regime cipriota não apenas se mantém um amigo íntimo de Israel como um grande aliado regional dos Estados Unidos. O ministro de Relações Exteriores do país, Constantinos Kombos, visitou Washington em 17 de junho, para coordenar o eventual papel do país na conjuntura em curso no Oriente Médio junto ao secretário de Estado, Antony Blinken.

Em resposta ao Hezbollah, o presidente do Chipre, Nikos Christolides, negou qualquer envolvimento de seu país na guerra — isto é, genocídio — em curso na Faixa de Gaza, assim como nos incessantes ataques israelenses ao Líbano.

O Chipre insistiu que não tem controle sobre as duas bases militares britânicas em seu território, que colaboram com Israel.

Contudo, Kornelios Korneliou, embaixador cipriota em Tel Aviv, reagiu com uma maior hostilidade a Nasrallah, ao delatar a parceria íntima entre israelo-cipriota e vangloriar-se de causar descontentamento no líder do Hezbollah.

Presidente do Chipre, Nikos Christodoulides (centro) e ministro de Relações Exteriores, Constantinos Kombos (à esquerda) recebem Antony Blinken, secretário de Estado dos Estados Unidos, no aeroporto de Lárnaca, no litoral do Chipre, em 5 de novembro de 2023 [Jonathan Ernst/AFP via Getty Images]

“Caso de amor”

O recente caso de amor entre Chipre e Israel não é tão recente assim — mas corre há mais de três décadas. Não obstante, a proximidade de ambos não se tornou aparente até março de 2011, quando o então presidente cipriota Dimitris Christofias, do Partido Progressista do Povo Trabalhador, de inclinação comunista clássica, realizou uma visita oficial ao Estado de Israel.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu devolveu o favor e, no ano seguinte, tornou-se o primeiro chefe de governo israelense a embarcar oficialmente ao Chipre.

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Embora a princípio o denominado comum fosse, ao menos aparentemente, as reservas de gás natural entre as águas do Chipre e o Mar Mediterrâneo Oriental, a cooperação entre as partes ganhou volume, incluindo a ajuda israelense em aprofundar as relações entre Nicósia e a Casa Branca.

O então líder esquerdista do Chipre não foi o único “progressista” de um país-membro da União Europeia a alimentar laços com a ocupação. Cordialidade semelhante tornou-se ordem do dia após o partido Syriza chegar ao poder na Grécia em 2015.

Em 2021, Chipre e Grécia participaram de exercícios navais junto de Israel.

Contudo, se o regime cipriota começou a se aconchegar em Tel Aviv recentemente na história, cristãos e judeus sionistas há muito se envolvem nos assuntos do país.

Na ocasião da captura britânica do território insular, em 1878, por exemplo, o tabloide Jewish Chronicle, da cidade de Londres, afirmou: “O Chipre já foi uma próspera colônia de judeus. Por que não repetir o feito?” O artigo pedia a cidadãos judeus da Palestina e da chamada Grande Síria que emigrassem à ilha, ao argumentar que o Chipre poderia lhes “ofertar as mesmas atrações tentadoras dos antigos judeus, senão maiores. O país fica a apenas um dia de viagem por mar do continente. E, pela primeira vez na história [sic], os judeus da Palestina teriam a oportunidade de viver sob instituições benéficas sob as regras liberais mais iluminadas da Grã-Bretanha, sem se submeter à migração a climas remotos ou renunciar a seu estilo oriental de vida”.

O Reino Unido anexou o Chipre em 1914, quando os otomanos cederam às potências centrais. Em 1925, o país insular se tornou parte da coroa britânica.

Colônia sionista?

Os sionistas costumavam se referir às antigas colônias no Chipre por seu antigo nome hebraico, Kafrisim, ainda usado no idioma moderno, como uma espécie de precedente a seus planos de colonização. Foram os chamados israelitas-britânicos, no entanto, que se tornaram o mais ardente grupo protestante do Reino Unido a apoiar a colonização supremacista judaica na região.

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Fundado em 1874, o grupo compreendia fanáticos sionistas que pretendiam enviar os judeus à “Terra Santa”. Foi por meio de suas iniciativas que se estabeleceu o Fundo de Colonização da Síria — também conhecido como Sociedade de Auxílio aos Judeus sob Perseguição —, recebendo doações no Reino Unido para comprar terras na Palestina e em seus arredores.

Esses grupos passaram então a despachar migrantes judeus do Leste Europeu a partir da Inglaterra a suas novas colônias. O primeiro colonato judaico foi fundado na cidade portuária de Latakia, no noroeste da Síria, em 1882, mas durou somente um ano. Em 1883, os colonos judeus da Latakia, somados a judeus da Rússia, foram transferidos ao Chipre para se estabelecer um novo assentamento no país. A colônia se instalou assim no sudoeste da ilha, perto da aldeia de Kouklia.

Os colonos, no entanto, não se satisfizeram com o trabalho no campo e decidiram sair novamente em torno de 1884.

O Chipre já estava no alvo de Davis Trietsch, um militante protossionista da Alemanha. Em 1893, Trietsch expressou interesse no país:

Os ingleses não sabem o que fazer com esta terra, enquanto judeus por toda a parte buscam um lugar de assentamento a seus filhos … O Chipre está na vizinhança imediata da Palestina. Eu sei que entre os judeus dali havia o desejo de colonizar a Palestina, mas isso … não pode se realizar devido à posição do governo turco [otomano]. Me parece, portanto, que a ideia mais natural e oportuna para o retorno à Velha Terra possa bem ser combinada com a colonização do Chipre — não importa se o Reino Unido continuará a li.

Ao se deparar com o panfleto O Estado dos judeus, do fundador do sionismo Theodor Herzl, publicado em 1896, Trietsch se sentiu encorajado e viajou à Basileia, na Suíça, a fim de participar do Congresso Internacional Sionista de 1897. Poucas semanas após o evento, escreveu a Herzl sobre sua ideia referente ao Chipre e manteve uma troca de cartas com o pai do projeto colonial sionista sobre a matéria.

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Com apoio de Herzl, Triesch discursou no Terceiro Congresso Sionista em 1899, porém sem conquistar muito apoio a seu projeto. No Quinto Congresso Sionista, em 1901, o militante sionista alemão argumentou em defesa da criação da “Grande Palestina”, da qual o Chipre seria parte. Desta maneira, a colonização do território insular integraria o projeto sionista desde o princípio, em vez de servir de alternativa.

Foi assim que o Chipre se tornou potencial alvo da colonização supremacista judaica.

“Grande Palestina”

Em 1897, a Associação para Colonização Judaica (JCA) instaurou uma colônia no Chipre para judeus da Rússia, aos quais se juntaram concidadãos que estavam na Palestina. O colonato de Margo-Tchiflik, a 14 km de Nicósia, não superava 200 pessoas e foi enfim desmantelado em 1927 quando os colonizadores se voltaram à Palestina.

Pouco após Herzl, fundador da Organização Sionista Mundial (OSM), identificar o Reino Unido como patrono ideal de seu projeto colonial supremacista judaico, ele próprio e seus emissários conduziram uma série de conversas a portas fechadas com oficiais do Império Britânico. Herzl foi bem específico sobre por onde deveria começar os avanços coloniais judaicos.

Quando Herzl se encontrou com Joseph Chamberlain, então secretário das Colônias do Reino Unido, propôs o Chipre — onde a JCA já tinha presença — como localidade alvo, assim como a região de el-Arish e a península do Sinai.

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Chamberlain, cristão sionista e notório antissemita que se opunha à imigração judaica do Leste Europeu ao Reino Unido, mostrou-se simpático, mas ressaltou que seu regime não se incumbiria de expulsar os gregos e “islamitas” do Chipre.

Herzl esclareceu que seu plano começaria por criar uma “Companhia Judaica Oriental” com capital inicial de £5 milhões (US$24.5 milhões) para colonizar o Sinai e el-Arish e atrair os cipriotas para fora de suas terras. “Os islamitas vão embora, os gregos ficarão felizes em vender suas terras por um preço e seguir a Atenas ou Creta”, argumentou o líder sionista.

Contudo, diante das ressalvas de Chamberlain sobre expulsar os cipriotas, a alternativa egípcia pareceu mais prática. Herzl e correligionários viajaram ao Egito em 1903, onde se reuniram com Lord Cromer, então governador britânico da colônia, para negociar a colonização judaica da região entre o Nilo e o Canal de Suez.

O projeto, no entanto, não se materializou devido às condições áridas da área — uma conclusão que desencorajou os emissários sionistas ao chegarem à região.

Herzl e Trietsch entraram em confronto no Sexto Congresso Sionista, em 1903, devido ao abandono do projeto da Grande Palestina no Chipre, Sinai e el-Arish. O embate deu-se após surgir a ideia de utilizar Uganda para a colonização judaica — um território que não integrava os sonhos e delírios da Grande Palestina dos velhos sionistas. Os planos jamais chegaram às vias de fato.

Após a Primeira Guerra Mundial, o movimento sionista conquistou o patronato da Grã-Bretanha a seu projeto de colonização na Palestina. De fato, os sionistas fizeram bom uso dos métodos coloniais britânicos no Chipre para dividir as comunidades cristãs e muçulmanas do país.

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Em janeiro de 1922, Herbert Samuel — alto-comissário sionista do Reino Unido para a Palestina sob Mandato Britânico — inventou um novo escritório sectário aos cidadãos muçulmanos do país, batizado de Conselho Supremo Islâmico, com intuito de sabotar as relações históricas intercomunitárias no território ocupado. Samuel tirou a ideia de políticas prévias do Império Britânico, aplicadas sobre os muçulmanos do Chipre.

Estado pária

Antes de o Chipre adotar a toxicidade pró-sionista da União Europeia, assim como fez a Grécia, o país ostentava um histórico em defesa dos direitos palestinos e mesmo havia reconhecido o Estado da Palestina.

Seu posicionamento em solidariedade à Palestina era tamanho que, em 1993, Tel Aviv declarou a primeira-dama Androulla Vassiliou, esposa do presidente George Vasiliou, como persona non grata, quando sua delegação oficial tentou se encontrar com Yasser Arafat, presidente da Autoridade Palestina, submetido a prisão domiciliar pelas forças israelenses em seu próprio escritório, na cidade de Ramallah.

Hoje, à medida que cada vez mais países cortam relações e impõem sanções a Israel, o relacionamento israelo-cipriota continua a se robustecer. O isolamento da ocupação e sua consolidação ao caráter de Estado pária, na arena internacional, parece pouco ou nada relevante ao governo cipriota.

Se os cipriotas realmente acham a colonização supremacista judaica e a campanha de genocídio israelense por toda a Palestina histórica tão aceitável, ao ponto de insistirem em relações amistosas e colaboração armada, quem sabe, poderiam voltar no tempo e oferecer seu próprio território ao projeto colonial sionista, ao ressuscitar os sonhos de ideólogos de outrora em tomar a ilha.

Isso é particularmente verdade considerando que a embaixada do Chipre em Tel Aviv costuma celebrar as antigas colônias hebraicizadas no país. Surpreendentemente, não comemora os colonatos de Kouklia ou Margo-Tchiflik.

Quem sabe, dadas as boas vindas cipriotas, os cipriotas podem lançar novos chamados pelo “retorno” dos judeus modernos às antigas colônias hebraicas de Kafrisin, e mais recentemente os colonatos sionistas de Kouklia e Margo-Tchiflik. É provável que isso ajudaria a desescalar as tensões na região, oriundas da violenta colonização das terras palestinas.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 26 de junho de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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