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Vozes censuradas de soldados israelenses veem à tona após meio século

Protesto contra a intervenção militar ocidental no Oriente Médio, durante a chamada Guerra dos Seis Dias, em frente à sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos, em 10 de junho de 1967 [Bob Parent/Getty Images]

Após quase meio século de rigoroso sigilo atribuído a relatos eloquentes do exército de Israel, estes enfim puderam ser ouvidos, com o lançamento do documentário Censored Voices — ou Vozes censuradas, em português —, dirigido pela cineasta israelense Mor Loushy, que estreou em 2015 no Festival Internacional de Cinema de Sundance.

Após uma introdução preliminar, Vozes censuradas leva a registros de vídeo um tanto granulados que mostram o retorno triunfal dos soldados israelenses após a guerra de 1967. As ruas estão repletas de pessoas que comemoram. Israel havia vencido a então rodada de conflito. Ao enfrentar as forças combinadas do Egito, da Síria e da Jordânia, as chances pareciam contrárias à jovem nação. No entanto, após somente seis dias, o regime israelense proclamou sua vitória, triplicando a área sob seu controle. Soldados retornavam como heróis.

Semanas após terminar a guerra, Avraham Shapira e Amos Oz viajaram de colonato em colonato (kibutzim) com um gravador de fita que tomaram emprestado. O conhecido escritor e o rabino pediam meticulosamente aos soldados que voltaram da guerra que contassem suas histórias e o que sentiam. Queriam, como disse Oz, “tentar explicar o fato com que todos se depararam — que as pessoas não voltaram felizes da guerra; ao contrário, que havia um senso de melancolia que os jornais não conseguiam abordar”. Todavia, quando avançaram à publicação do material que compilaram, o governo em Tel Aviv ordenou a censura de 70% dos registros. Shapira publicou os 30% remanentes em seu livro The Seventh Day: Soldiers’ Talk about the Six-Day War — ou, em tradução livre, O sétimo dia: Soldados falam da Guerra dos Seis.

Anos depois, Mor Loushy convenceu Shapira a lhe dar acesso às fitas. A cineasta então conseguiu localizar algumas das vozes gravadas e pediu aos homens por trás delas que participassem do documentário. Ouvimos esses homens, quase 50 anos mais velhos, ouvirem pela primeira vez o que disseram logo ao voltar da guerra; com efeito, todo o seu passado transborda ao tempo presente.

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“Numerosas vezes, capturamos os caras, deixamos eles em posição e simplesmente os matamos”, recorda um dos veteranos. Outro destaca: “Fiquei bastante impressionado com a calma com que eu atirava … era como se fosse um parque de diversões”. Outro soldado relembra a ocasião na qual matou um soldado egípcio, quando, ao vasculhar seus documentos, encontrou fotografias de suas crianças — apenas então, reconhece, pareceu compreender que havia matado um outro ser humano.

Com o fim da guerra, no entanto, não terminou a brutalidade. Os soldados reformados recordam ordens de seus comandantes para atirar contra oficiais egípcios mesmo após ter começado o cessar-fogo. Lembram também o assassinato frio e cruel de cidadãos sírios, agora refugiados, a metros de distância de suas esposas e filhos; e um palestino de 70 anos de idade que foi forçado a carregar seus pertences nas costas para escapar de tamanha violência. As cenas ecoam aquelas do próprio Holocausto. Ao ver o senhor palestino, com idade avançada, olhar uma última vez para sua casa e chorar, um dos soldados comenta: “Tive um sentimento abismal de que eu era mau — de que eu seria uma pessoa desprezível. Nada conseguia fazer esse sentimento ir embora”.

O documentário decida não virar o rosto, tampouco lavar as mãos, para atrocidades de Israel cometidas em um momento da história que foi consagrado como um triunfo sem igual por ideólogos coloniais, imbuído desde então na própria psique israelense. Quase um século depois, esses mesmos homens se sentiam desencantados com o Estado de Israel e a marca do sionismo representada por ele. Alguns notam ter desistido, após as atrocidades, de noções como paz ou humanidade — ainda assim, parecem indispostos a se tornarem antissionistas ou mesmo adotarem uma abordagem anticolonial. Trata-se, não obstante, de um documentário contra a guerra.

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Como um dos pouquíssimos relatos honestos do que aconteceu em 1967, através dos olhos daqueles que participaram em campo, Vozes censuradas é uma peça audiovisual com valor histórico. À medida que Israel, até hoje, continua a radicalizar e alistar seus jovens a sucessivas guerras de extermínio, cometendo violações a olho nu, os relatos desses soldados refletem as ações de seus filhos, netos e bisnetos.

Na parte final deste documentário, um ex-soldado pondera sobre o futuro de Israel: “Estamos fadados a bombardear aldeias, década após década?” Em 1967, assim como em 2024, parece tragicamente que sua percepção ainda coincide com a realidade.

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