RESUMO
O projeto colonial sionista de povoamento de Israel engloba toda Palestina histórica e o genocídio em curso em Gaza é a forma mais flagrante da continuada limpeza étnica do povo palestino e sua substituição por judeos israelenses. Este trabalho enfoca a cidade de Jerusalém Oriental Ocupada, apontando para a intensificação de práticas coloniais impostas à vida cotidiana da população palestina cujo objetivos são a limpeza étnica e a judaização da cidade. A partir de uma vivência que tive em janeiro de 2024 discuto um relato sobre as práticas coloniais de ‘unchilding’, interdição da infância e de vigilância impostos à vida diária, o mundano, de uma adolescente palestina. Opondo-se a este projeto se faz presente o ´Sumud´, termo que sintetiza o (r)exisir e a resistência do povo palestino em resposta a técnicas coloniais que intencionam o seu apagamento e a expulsão da sua terra.
Interdição da Infância e Vigilância na vida cotidiana
Para entender a vida cotidiana da população palestina de Jerusalém Oriental Ocupada, é importante levar em conta a categoria do “mundano” tal como elaborada por Shalhoub-Kevorkian (2015), pesquisadora e professora feminista recentemente presa pelas forças sionistas, retirada de dentro da sua cada em Jerusalém Oriental. O “mundano” é fonte indispensável ao entendimento das complexas formas de sujeição inscritas no projeto colonial sionista, bem como as respostas dadas pela resistência do povo palestino. Trata-se das inúmeras formas de exercer o controle social e o poder sobre a vida cotidiana das palestinas e palestinos, como as prisões arbitrárias e sem processo legal, as ameaças de expulsão e tomada das casas, a criminalização de ações comuns, como a interação em redes sociais, o exercício da opinião, entre outras.
Pensei nisso durante visita que realizei em janeiro de 2024, para estar junto à minha mãe hospitalizada, quando conheci Hanan, mulher palestina em seus quarenta anos, moradora de Jerusalém Oriental. No nosso primeiro encontro, Hanan parecia muito preocupada: falava ao celular em breves e rápidas frases, e tentava saber se a filha tinha chegado em casa. Era o início da noite, o que é, para a população palestina, especialmente para quem mora em Jerusalém, um período muito problemático do dia. Isso porque a cidade é militarizada pelo exército e por colonos civis israelenses fortemente armados, o que aumenta as probabilidades de violência do exército contra adolescentes palestinos. Daí que, para mães e pais palestinos, a segurança dos filhos adolescentes é preocupação constante, no essencial gerada pelo colonialismo israelense, regime cada vez mais implacável em suas relações com crianças e jovens. São frequentes os sequestros de meninas e meninos, bem como o encarceramento e a detenção administrativa sem respeito a direitos legais básicos. Em situações extremas podem conduzir à morte, como foi o caso de Mohamad Abu Kahder, estudado por Sara Ihoud (2015). Mohamad era um jovem palestino de 14 anos, sequestrado em frente de sua casa, em 2014, quando se dirigia à mesquita próxima para realizar a reza da madrugada. O garoto foi jogado para dentro de um carro por três colonos armados e levado para uma área próxima à Deir Yassin, cena de um dos mais terríveis massacres ocorridos durante a guerra de 1948. Lá, Mohamad foi torturado e queimado vivo. Ao analisar esse crime, a autora denuncia que a situação enfrentada pelas crianças palestinas em Jerusalém Oriental “as condena a zonas de abandono, vulnerabilidade desproporcional, despejo e morte” (p.8)
Crimes terrificantes, em muito similares ao assassinato de Mohamad, estão inscritos na memória coletiva palestina. Isso, de forma intergeracional, dentro e fora da Palestina histórica. Os massacres de Deir Yassin e Tantura, ambos em 1948, e o de Sabra e Chatila, em 1982, de certa forma constituem uma linha de tempo a marcar o projeto colonial de Israel, no qual o assassinato de Mohamad é mais um episódio. Para Shalhoub-Kevorkian (2015), essas memórias coletivas, passadas de geração em geração, representam as “feridas psíquicas” igualmente coletivas que marcam a vida do povo. Ao mesmo tempo, tais feridas o mobilizam para o não-esquecimento e para a persistência na luta nacional de libertação.
Com o passar do tempo, ao longo dos 76 anos de concretização do seu projeto colonial, Israel vem aprimorando as técnicas de controle da vida cotidiana dos palestinos, principalmente por meio da vigilância constante e da imposição de regras absurdas, inscritas num referencial jurídico exclusivamente aplicável aos palestinos. Isso é chamado por Shalhoub-Kevorkian (2015) de “Segurança Teológica”. Cada palestino e cada palestina representa, na lógica da segurança teológica, uma ameaça existencial, dado que todos vivem num Estado proclamadamente judeu; portanto, num Estado de base teológica. Para além disso, palestinos e palestinas são, também, considerados um perigo iminente para a segurança do estado sionista. Essa conjugação torna inevitável a desumanização do outro por meio de um sistema de apartheid que continua colocado em pleno funcionamento desde seu começo, em 1948 , como tem sido cada vez mais amplamente reconhecido em nível internacional. O pesquisador palestino Ahmad Sa’di (Silva, Vechiato, Odeh, 2021) emprega outra categoria, para entender a mesma problemática, a de “Vigilância Sufocante”, entendida um conjunto complexo de práticas coloniais, impostas por meio de um ´Estado de exceção´ à população palestina no período que vai de 1948 a 1968. Durante esses 20 anos, um controle rigoroso de todas as dimensões da vida diária foi imposto por Israel. Para Sa’di, o sistema vigente na época impôs uma estrutura de controle jurídico aplicada exclusivamente à população nativa, estrutura na qual se articulava o exercício de violência brutal e arbitrária. Essa vigilância sufocante, ainda mais aprimorada por meio de tecnologias avançadas desenvolvidas por Israel ao longo das últimas décadas, tornou-se ainda mais opressiva. Não sem motivos, é notória a reputação internacional de Israel como centro de produção e testagem de armamentos, assim como de venda de tecnologias repressivas voltadas para o controle da sociedade civil em dimensão planetária. (Loewenstein, 2023).
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No caso relatado por Hanan, as redes sociais de sua filha adolescente foram monitoradas pela segurança israelense. A jovem foi convocada a comparecer a um centro de interrogatórios da polícia militar, acusada de ameaçar a segurança de Israel por haver “curtido”, na Internet, uma mensagem que apoiava a resistência palestina. Esse tipo de vigilância é a que relega as crianças palestinas às “zonas de morte”, mencionadas por Shalhoub-Kevorkian (2015). Tais zonas são espaços de graves ameaças, de incriminação, de demonização da criança e do adolescente. Criam espaços de vulnerabilidade em que são manejadas pelas forças repressivas israelenses as retaliações que costumam ocorrer contra a família, sendo a expulsão da cidade o que mais atormenta a vida familiar.
Hanan e seus filhos moram em Jerusalém Oriental, a parte palestina da cidade que foi ocupada por Israel desde 1967 e que se tornou o “locus” de formas abjetas de limpeza étnica. São frequentes os ataques perpetrados por colonos judeus apoiados pelo exército israelense com vistas a despejar famílias palestinas de suas casas. Igualmente frequentes são as revogações do próprio direito de se morar na cidade, atos estes baseados em políticas obviamente discriminatórias. Qualquer situação incomum que desperte a suspeita da polícia israelense, mesmo que infundada, abre um leque para dezenas de formas de retaliação e de punição coletiva. No caso da filha de Hanan, a adolescente foi submetida a várias punições, indo desde a convocação para comparecer ao centro de polícia militar (algo aterrorizante, dados os maus tratos aos quais são submetidos palestinos/as nestes locais de repressão), até interrogatórios, confisco de celular e condenação arbitrária à prisão domiciliar. Tudo isso foi aplicado à filha adolescente de Hanan. O arbitrário inclui a inexistência do devido processo legal. Não houve julgamento em corte e, muito menos, representação legal de defesa, algo garantido a menores pelo direito internacional. A prisão domiciliar, uma prática colonial racista voltada tão somente para a população palestina, vem sendo implementada por Israel desde o início da ocupação militar de 1967, e crescentemente a partir da judaização de Jerusalém Oriental.
A prisão domiciliar de crianças e jovens é uma das formas sutis de controle e encarceramento do corpo, ao impor aos pais o papel de carcereiros. Dentro da lógica perversa do colonialismo israelense, pais e mães são forçados a vigiar seus próprios filhos e filhas. Ou seja, os lares são convertidos em prisões. Para Shalhoub-Kevorkian, tais condições desumanas constituem o foco do processo de “Unchilding” (2015), a interdição da infância.
Com a prisão domiciliar, a vida escolar da filha de Hanan foi interrompida, o seu isolamento foi em muito aumentado, ela foi obrigada a se distanciar de seus pares e sua vida social foi anulada. Disso também resultou a suspensão de seu direito à educação, o que contraria as normas internacionais. Na fala de Hanan, o objetivo final de Israel, ao impor a prisão domiciliar a crianças e adolescentes, é importunar, molestar e pressionar as famílias a abandonarem a cidade para que então sejam substituídas por colonos judeus. “Só que nós”, disse-me ela, “não iremos embora; ficamos onde estamos; é a nossa terra”.
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O fato de a prisão domiciliar haver sido imposta à filha adolescente gerou outra preocupação, a possibilidade de violência sexual por parte de policiais israelenses que a interrogaram e que fiscalizam a implementação da punição. Nesse contexto, é importante sublinhar que Shalhoub, Ihmoud e Daher-Nashi (2014) estabeleceram com precisão a relação histórica entre Israel colonial e o corpo da mulher palestina:
Israel foi construído sobre as ruínas da pátria palestina, sobre sua terra, dor e deslocamento. Israel foi construído sobre a destruição de nossos laços sociais comunitários, a violação e a invasão de nossas casas e corpos. O estupro e o assassinato de mulheres palestinas foi um traço central dos massacres e despejos sistemáticos feitos pelas tropas israelenses durante a destruição de aldeias em 1948. (p.8)
Sumud e continuar a existir
Nesse processo de sujeição e de imposição de poder e domínio absolutos, por definição brutal e violatório da noção de humanidade universal, surge com igual importância um tipo específico de resistência, um esforço incessante de afirmação do direito do colonizado à existência humana, algo que caracterizou as grandes lutas anticoloniais dos anos 60 e 70, de que resultou na prática a quase total extinção do domínio colonial em escala planetária. O projeto colonial de Israel, nascido e nutrido no bojo do colonialismo europeu do século XIX, se vê confrontado por incessantes formas de resistência do povo palestino (Rouhana, 2022). Isso fica claro nas revoltas populares dos anos 1920, 21, 23, 28 e 29, culminando na Grande Revolta que durou 3 anos, de 1936 a 1939 (Kanafani, 2022). Por meio da Grande Revolta, o povo palestino opô-se ao Mandato Britânico, expressão do poder colonial europeu que se tornou o principal apoio do movimento sionista, incidindo pesadamente para a formação e o reconhecimento do estado de Israel. Em tempos mais recentes, podemos citar as mais conhecidas e perseverantes revoltas palestinas, tais como a Primeira Intifada 1987-89, a Segunda Intifada em 2000 e a Grande Marcha de Gaza em 2018.
Em sua teorização sobre colonialismo, Wolfe considera que a dominação colonial não é um evento, é uma estrutura, isto é, constitui a soma de relações de poder e de dominação subjacentes ao colonialismo. Rouhana (2022) complementa essa perspectiva enfatizando o componente da contestação e da recusa do colonizado à sua desumanização. A isso ele chama de “processo”. Assim sendo, a estrutura não poderia operar de forma autônoma, uma vez que é impactada pelo processo, sendo este mesmo um fator chave na definição do percurso e das mudanças ocorridas no interior do projeto colonial. Para Rouhana, o essencial é a incessante resistência do povo palestino ao colonialismo, que já completou mais de cem anos, e que inclusive sobreviveu ao projeto de “Transfer”, em 1948, (Masalha, 1992). Tal resistência tem frustrado sistematicamente o projeto colonial sionista de Israel, posto que o povo palestino seguiu permanecendo na sua terra e firme em sua luta por justiça. Rouhana destaca que a resistência impõe ao colonizador uma lógica que acaba por intensificar a brutalidade colonial e a negação pura e simples do direito do colonizado à existir. De maneira similar, na própria sociedade colonizadora ocorrem mudanças de peso, entre elas, no caso de Israel, a intensificação de tendências políticas de extrema direita, com seus partidos hoje estando estrategicamente representados no governo.
O projeto colonial sionista tem por norte o apagamento do outro, a desumanização do nativo e, por isso mesmo, choca de frente com aqueles que “continuam a existir” (Shalhoub-Kevorkian, 2015), a despeito das ideologias e das práticas de segurança, de vigilância e de disseminação do medo, instrumentos que são, em última instância, pretextos para a ocultação da violência e das dinâmicas expansivas de poder. Assim, estas ações tentam garantir a perpetuação das referidas estruturas. No imaginário histórico, político e social palestino, a luta, em todas as suas formas, desde as pacíficas até as armadas, está resumida no conceito de Sumud. Embora admita várias traduções, esta palavra árabe significa, literalmente, firmeza, a força e a perseverança constante na luta, ao longo do tempo e em todos os lugares em que vive o povo palestino, seja no exílio ou na Palestina histórica. Segundo Meari (2014), “Sumud não é apenas uma habilidade a ser treinada; [também] transcende para se tornar um estado de espírito psicoafetivo e um modo de ser político-ético que integra a cultura pública”. (p. 85).
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Por outro lado, a forma como o colonizado reage e o caminho que adota são partes integrais de mecanismos de opressão que são operacionalizados por meio de massacres, práticas discriminatórias, leis racistas e violência generalizada. Junto a isto, existem movimentos e processos de resistência popular, tal como o sumud. No caso da Palestina, o sumud cobre um amplo arco de vivências que requerem leitura e análise a partir do mundano no qual se constroem solidariedades sutis e se mantém a narrativa palestina, o exato inverso do memoricídio. Dessa forma, redes sociais de apoio e ações coletivas capazes de superar os sofrimentos e as injustiças diárias, ganham força (Shalhoub-Kevorkian, 2015).
De acordo com Shalhoub-Kevorkian (2020), o colonialismo sionista busca o isolamento dos indivíduos e também a dissolução dos coletivos, o que se manifesta inclusive nos casos de criminalização de crianças e adolescentes e de seu encarceramento e sujeição a riscos de abusos sexuais, físicos e mentais. O intuito é claro: danificar sua vida presente e inviabilizar seu futuro. Essa estratégia perversa, objetiva por igual a desestruturação do tecido familiar, a exaustão de sua capacidade de lidar com os custos concretos de vários danos, os financeiros, os psíquicos e os sociais. Com isso, as vítimas são relegadas a zonas de maior vulnerabilidade.
Hanan respondeu à situação de vulnerabilidade imposta a sua filha acolhendo-a, intermediando sua volta para a escola, protegendo-a tanto do machismo do patriarcado da própria sociedade palestina quanto da opressão de gênero colonial (Adi, Odeh, Misleh, 2021). Ao assim proceder, Hanan conseguiu diminuir o peso da incriminação e da demonização impostas pela situação colonial. Nesse mesmo movimento protetor, fortaleceu o elo da vítima com todos os membros da família. O esforço feito foi enorme, ainda que o sofrimento e as feridas gerados por esse episódio continuem a impactar a vida de Hanan e de sua família. Mas, ela me disse repetidas vezes: “Tudo vai dar certo. É o nosso destino. Mas a gente luta e permanece aqui”. Frase que confronta as políticas coloniais enfrentadas pelo povo palestino e a interdição da infância impostas contra a juventude.
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Referências
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Publicado originalmente em Revistas USP