Em meados de junho, o comentarista político indiano Anand Ranganathan, com viés à extrema-direita, reivindicou uma solução “como a de Israel” na Caxemira, ao declarar a um podcast: “Israel cuidou de seu povo, que sofreu muito. Nós não — simples assim. E apesar disso não haverá solução por causa da mentalidade das pessoas que odeiam os judeus [sic] e das pessoas que odeiam os hindus [sic]”.
O vídeo viralizou nas redes sociais. Horrorizados com a menção de uma solução “como a de Israel”, em meio ao genocídio em curso em Gaza, muitos denunciaram a fala como um claro chamado ao genocídio dos muçulmanos na região da Caxemira.
Ranganathan respondeu no Twitter (X) que não pedia um genocídio, mas sim que outro genocídio hipotético fosse impedido, ao “reabilitar as vítimas, instalar assentamentos, combater o terrorismo e assegurar fronteiras”. As vítimas, segundo sua versão, seriam os panditas da Caxemira, uma minoria hindu na região, cuja grande maioria — cerca de cem mil — deixou o vale na década de 1990, sob condições que costumam dar vazão a discordâncias profundas.
Alguns comentaristas de direita na Índia e na diáspora costumam se referir, de maneira capciosa, à partida trágica dos panditas da Caxemira como “genocídio”, ao explorar sua experiência como arma para demonizar ainda mais a maioria islâmica do vale ocupado, que reivindica seus direitos por autodeterminação há décadas. Para os nacionalistas de direita, os esforços do regime indiano de Narendra Modi nos últimos anos, para anexar por completo o território, são uma forma de “justiça” às supostas vítimas, além de um caminho para combater o “terrorismo”.
Não é a primeira vez, no entanto, que uma personalidade política ou midiática indiana pede que o modelo colonial israelense seja implementado na Caxemira.
Em novembro de 2019, meses após o governo indiano remover o status semiautônomo da Caxemira, o cônsul-geral da Índia em Nova York, Sandeep Chakravorty, declarou que seu país começaria a construir assentamentos como aqueles de Israel no território, no intuito de possibilitar o “retorno” da população hindu à Caxemira.
Colonialismo de assentamento
Os comentários de Ranganathan foram condenados por muitos membros da esquerda liberal na Índia, que se opõe ao genocídio israelense em Gaza, com apoio dos Estados Unidos, e certamente não querem que seu país seja comparado, no atual contexto, ao Estado de Israel. Recentemente, a população indiana consagrou o premiê nacionalista hindu a um terceiro mandato, no entanto, com menos entusiasmo e em uma situação política mais vulnerável.
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Outros buscaram distinguir as lutas na Caxemira e na Palestina. “Aqueles que associam ambas, em particular a direita linha dura e os islamitas [sic], não compreendem nem a disputa na Caxemira nem a questão palestina”, insistiu Stanly Johny, editor de política externa para o jornal The Hindu, nas redes sociais.
Parte da esquerda na Índia, embora simpática à causa palestina, simplesmente se nega a reconhecer as similaridades entre os projetos de colonialismo de assentamento tanto de Tel Aviv quanto de Nova Delhi. Para eles, os palestinos se engajam, sim, em uma luta legítima contra o colonialismo israelense, mas a Caxemira é uma de duas opções: uma disputa territorial entre Índia e Paquistão, em que o país vizinho apoia “terroristas” e “separatistas”; ou um problema interno da lei e da ordem, que envolve nada mais que um punhado de elementos rebeldes.
Os mais progressistas entre eles até admitem que a Índia deve lidar com os habitantes da Caxemira de forma mais construtiva, embora insistam que o vale é parte “integral” do país.
Para deixar claro — a Caxemira e a Palestina não são idênticas, como quaisquer outras regiões no globo. Ainda assim, suas lutas têm em comum as raízes do problema: isto é, a colonização britânica.
Na Palestina, a crise resultou da Declaração Balfour de 1917, conforme a qual Londres prometeu um “lar nacional para o povo judeu” nas terras ancestrais do povo nativo. Na Caxemira, sob o Tratado de Amritsar, de 1846, os britânicos venderam o território a um poderoso senhor da guerra hindu da região de Jammu, culminando em opressão brutal contra as comunidades islâmicas, predominantes no vale.
A luta por libertação em ambos os casos antecede os eventos monumentais de 1947 e 1948, quando ambas as regiões foram submetidas a partilha, muito embora houvesse, como há, diferenças entre elas. O Plano de Partilha das Nações Unidas para a Palestina normalizou o violento colonialismo de assentamento do recém-criado Estado de Israel, enquanto a partilha do subcontinente indiano incorreu da inabilidade dos dois maiores blocos envolvidos na Índia Britânica de consentir com um regime de compartilhamento de poder após a partida das forças europeias.
Deslocamento e limpeza étnica
O “nascimento” da Índia moderna e do Estado colonial de Israel também culminou no deslocamento à força e na limpeza étnica do povo palestino, por meio da Nakba — ou “catástrofe” — e dos caxemires por meio do massacre de Jammu. Após primeira guerra entre Índia e Paquistão, o território da Caxemira foi então dividido entre os dois novos Estados-nação.
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A Palestina e a Caxemira estão entre os primeiros assuntos em pauta nos encontros da então emergente Organização das Nações Unidas (ONU), ambas sujeitas a caprichos e fracassos da ordem internacional liberal.
As Nações Unidas sugeriram um plebiscito a ser realizado em toda a Caxemira, porém sem o aval de Nova Delhi. Este momento definiu o movimento por autodeterminação por quase oito décadas. O subsequente regime da Índia sobre a Caxemira conseguiu, a seguir, por meio de administrações colaboracionistas, como a Conferência Nacional e o Partido Democrático Popular — semelhantes à Autoridade Palestina e sua relação com Israel —, na prática, terceirizar a ocupação e o projeto colonial.
Embora o projeto colonial israelense seja reconhecido como tal, sobretudo em círculos progressistas e de esquerda, há muito menos consciência sobre o jugo da Índia sobra a Caxemira.
Isso se deve a uma geopolítica ampla na qual, por décadas e décadas, a Índia conseguiu se retratar como vanguarda do mundo anticolonial, por meio de soft power, ao omitir aspectos de um Estado supremacista e repressivo ao projetar uma imagem da “maior democracia do mundo”, diversa e não-violenta, supostamente incapaz de subjugar toda uma população contra a sua vontade.
De certa forma, a esquerda liberal está certa ao dizer que a Índia não é Israel. Afinal, a Índia fez um trabalho muito melhor em mascarar seus crimes de guerra e sua ocupação colonial na Caxemira. Contudo, fundamentalmente, para ambos os Estados, os anseios se referem à demografia.
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Para Israel, a presença dos palestinos nativos equivale a uma “bomba demográfica”, ou seja, uma ameaça ao “Estado judeu” — problema que deve tratado decisivamente. Do outro lado, para a Índia, os caxemires islâmicos, uma maioria demográfica que contesta a soberania indiana de suas terras, devem ser substituídos por hindus, a fim de garantir a dominação e o poder.
Lembrança terrível
Para além das tentativas de desenredar ambos os movimentos, há outro problema com o discurso da esquerda liberal: o modelo de Israel já está sendo implementado no vale da Caxemir. O duradouro relacionamento entre Índia e Israel vai além de laços militares e táticas compartilhadas de opressão, mas inclui também vínculos ideológicos entre o sionismo e o Hindutva, ou ultranacionalismo hindu, incluindo na diáspora.
Fundamentalmente, este modelo — imposto historicamente, e no tempo presente, por outras potências coloniais e/ou de assentamento — busca subjugar os movimentos de libertação, substituir as comunidades nativas, expropriar terras e apagar a história. Ao brandar credenciais supostamente liberais, democráticas e seculares, seus ideólogos buscam caluniar a mobilização popular como “terrorismo” e inverter perpetradores e vítimas. Este modelo concede total autoridade ao Estado para fazer o que bem quiser a fim de esmagar a dissidência, sem qualquer respeito à lei internacional.
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Na Caxemira, os métodos israelenses não transcorrem apenas desde 2019, quando a Índia revogou o status semiautônomo da Caxemira. Desde 1947, o Congresso Nacional Indiano — conhecido como o partido “secular” na Índia — empregou elementos deste modelo ao tentar “integrar” à força os muçulmanos da Caxemira a sua imagem de país.
Conforme minha pesquisa, fica claro que, por décadas, este processo ocorreu por meio de esforços de desenvolvimento e emancipação das comunidades coloniais, ou ainda, a “política da vida” — uma estratégia que Israel aplica na Cisjordânia e Gaza desde 1967. Ao se deparar com o fracasso dessas iniciativas, no fim da década de 1980, quando se deflagra uma mobilização popular de massa por libertação na Caxemira, incluindo atos de resistência armada, o governo indiano decidiu adotar táticas contrarrevolucionárias similares às de Israel.
Dentre as quais: massacres, tortura, violência sexual, prisão sem julgamento ou sequer acusação, execuções extrajudiciais e demolição de casas — para citar apenas algumas. Forças indianas de fato treinaram junto do exército israelense, a fim de aprender com eles como subjugar a população.
Em meio à ascensão do nacionalismo hindu na Índia, se perdeu há muito tempo todo e qualquer discurso benevolente de inclusão, substituído por uma ideologia que convoca de forma explícita uma mudança demográfica e a construção de assentamentos ilegais hindus em terras caxemires.
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Dado que Israel continua a escapar impune de suas violações em Gaza — e no restante da Palestina histórica —, os muçulmanos da Caxemira sentem que a retórica genocida a qual são reiteradamente submetidos pode, sim, se materializar em breve. Aspectos do modelo israelense são impostos contra muçulmanos em toda a Índia, via linchamentos frequentes e chamados por genocídio e limpeza étnica, além de destruição de casas de famílias islâmicas e aprovação de leis discriminatórias.
Ao lermos os relatos recentes do uso hediondo de violência sexual contra os palestinos encarcerados nas cadeias de Israel, incluindo até mesmo a inserção de barras de metal em seus ânus, fica um lembrete apavorante do tipo de abuso aplicado também contra os prisioneiros da Caxemira nas prisões indianas.
Em último caso, o modelo repressivo compartilhado entre Índia e Israel busca remover de suas vítimas toda e qualquer dignidade humana.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 13 de junho de 2024