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Camponeses pegam em armas no Sudão, não conseguem impedir massacres

Um ataque a Wad al-Nura matou 150 pessoas e atraiu repúdio internacional. Conforme fontes, foi um dos ataques mais letais às comunidades nos tempos recentes
Tendas para deslocados internos na região de Gedaref, no estado de Sennar, no Sudão, em 14 de julho de 2024 [AFP via Getty Images]

Em uma manhã de quarta-feira, em 5 de junho de 2024, dezenas de combatentes das Forças de Suporte Rápido (FSR) cercaram Wad al-Nura.

A aldeia, na parte oeste do estado de Gezira, no Sudão, permaneceu relativamente em paz pelos então 14 meses de guerra. Por vezes, serviu de refúgio a refugiados das áreas vizinhas, que buscavam escapar dos ataques do grupo paramilitar. Desta vez, contudo, as milícias se voltaram a Wad al-Nura.

Ao antecipar a ofensiva, camponeses locais escavaram trincheiras nos acessos da aldeia e as encheram de água, na esperança de que os fossos poderiam, de alguma maneira, protegê-los. Alguns camponeses, ex-soldados ou ex-policiais, buscaram se armar para erguer um pequeno checkpoint.

As Forças de Suporte Rápido, no entanto, não foram dissuadidas. Segundo ativistas pró-democracia do Comitê de Resistência de Wad Madani, capital do estado de Gezira, os combatentes que sitiavam a aldeia abriram fogo, fazendo chover disparos de todas as direções. Após uma pausa, voltaram a atirar. Conforme os relatos, o massacre pareceu sistemático. Dezenas de pessoas foram imediatamente mortas. Centenas se dissiparam por toda a região em busca de segurança.

Por semanas, o mundo alertou a um massacre iminente em al-Fasher, capital do estado de Darfur do Norte, sitiada pelas Forças de Suporte Rápido. Porém, enquanto os olhos se voltavam a al-Fasher, mil quilômetros a leste militantes varriam o estado de Gezira, com combates em curso.

Fontes reportaram ao Middle East Eye que ao menos 150 pessoas foram mortas apenas em Wad al-Nura. Cerca de cem foram enterradas em uma vala comum na praça matriz. Trinta e cinco crianças estavam entre os mortos, segundo as Nações Unidas.

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E muito embora o massacre tenha atraído condenação de governos estrangeiros, uma onda de violência seguiu pelo país, com centenas de mortos em diferentes localidades, em um período de somente dois dias.

Testemunhas narraram a fuga de milhares de sudaneses que buscavam nada mais que salvar suas vidas, à medida que os batalhões das Forças de Suporte Rápido avançavam pelo território sem qualquer resistência por parte do exército sudanês.

Ataques foram presenciados nos estados de Nilo Branco, Sennar, Cordofão do Norte e Cordofão do Sul, além de Omdurman, cidade-irmã da capital Cartum, na margem oeste do Nilo, onde 40 pessoas foram mortas apenas em 4 de junho.

As Forças Armadas do Sudão responderam com ataques aéreos, que fontes em campo disseram levar a mais mortes e destruição sobre a população civil.

Pegando em armas

Logo após a chacina de Wad al-Noun, o exército regular e o grupo paramilitar trocaram acusações.

Os comitês de resistência do estado de Gezira, parte de uma rede nacional de ativistas pró-democracia, por sua vez, publicaram imagens do massacre nas quais soldados das Forças de Suporte Rápido empregaram artilharia pesada contra os aldeões.

“A aldeia de Wad al-Nura vivenciou um genocídio”, destacaram os comitês. “O exército não deu qualquer tipo de proteção aos civis”.

As Forças de Suporte Rápido negam ter matado civis. Segundo sua versão dos eventos, o grupo “retaliou primeiro”, à medida que milícias islâmicas supostamente armaram os moradores para atacar as fileiras paramilitares.

As Forças de Suporte Rápido combatem as Forças Armadas desde abril do ano passado, quando divergências entre os então aliados do regime militar — sobre a integração das milícias ao contingente regular — culminou em violência. Desde então, estima-se cerca de 150 mil mortos, nove milhões de deslocados e grande parte do país sujeita ao risco de fome generalizada.

O exército sudanês tem dificuldades contra as forças paramilitares — mais ágeis e com mais experiência em combate. Contudo, nos últimos meses, conquistou alguns ganhos ao importar drones do Irã e cooptar a suas forças ex-rebeldes, voluntários civis e outros batalhões armados.

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As Forças de Suporte Rápido afirmam que o exército e aliados “jihadistas” se reuniram em três campos a oeste de Wad al-Nura e na região vizinha de al-Mangali. Porta-vozes alegaram que as tropas milicianas capturaram armas pesas e perderam oito membros nas operações em Wad al-Nura.

Sudaneses que recentemente fugiram de Gezira relataram ao Middle East Eye que suas comunidades em todo o estado buscam se mobilizar em autodefesa, e que isso levou o grupo paramilitar a antecipar seus ataques, com receio de eventual resistência.

Uma fonte anônima, hoje em Gedaref, explicou que a resistência às Forças de Suporte Rápido toma diversas formas, desde negociação a defesa civil. “Os habitantes de Gezira têm o direito de se defenderem quando tentam matá-los e o exército é negligente em sua função de defender os civis e todo o país”, comentou a fonte.

“Sou da aldeia de al-Takena, que enfrentou todo tipo de violações, onde tentamos nos defender”, acrescentou. “Tentamos obter recursos de nossos filhos vivendo no exterior, para comprar armas e estabelecer pequenos grupos para nos defendermos de ataques. Ainda assim, a diferença entre nós e as Forças de Suporte Rápido é enorme. Foi assim que fomos derrotados”.

Fontes em Gezira ou que deixaram a região notaram que as aldeias de al-Husa, Fadasy, al-Munira e al-Halaween, entre outras no estado ocidental, foram submetidas a vários ataques atrozes ao longo de semanas.

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Ahmed Mohamed, residente de al-Duem no estado do Nilo Branco, a oeste de Gezira, reiterou ao Middle East Eye que as tropas paramilitares também conduziram ataques contra as aldeias da região, incluindo al-Malig e al-Shetaib. Centenas de jovens dessas áreas tentaram instituir grupos de defesa popular — ou núcleos de resistência armada —, sob comando nominal das Forças Armadas.

As Forças de Suporte Rápido tendem a caracterizar esses grupos como supostamente apoiados por elementos do regime deposto de Omar al-Bashir, incluindo organizações islâmicas de orientação linha-dura. A resistência popular, porém, nega veementemente as alegações.

E embora muitos sudaneses, sobretudo críticos ao grupo paramilitar, considerem essa mobilização popular como evidência da rejeição popular às Forças de Suporte Rápido, alguns componentes políticos expressam apreensão de que armar civis deve degradar ainda mais a condição em campo e prorrogar ainda mais o conflito.

Perigo à espreita

A mobilização civil está em pleno curso ao redor de al-Fasher, onde ex-rebeldes e forças militares buscam armar os residentes como preparativo a uma ofensiva das Forças de Suporte Rápido. Um residente que decidiu pegar em armas corroborou tais relatos ao Middle East Eye. “Vejo que a resistência armada popular está por toda a parte e pouco a pouco une os sudaneses para defender seu país”, apontou a fonte.

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A possibilidade de uma brutal ofensiva contra al-Fasher levou a semanas de apreensão. As Forças de Suporte Rápido fecharam quase todas as rotas de saída da cidade sitiada, ao convertê-la em uma potencial “caixa de morte”, uma vez atacada.

Combatentes paramilitares seguiram a invadir os diversos campos nos arredores de al-Fasher, abrigando sudaneses deslocados pelos conflitos em Darfur entre 2003 e 2005. De fato, a própria medula espinhal das Forças de Suporte Rápido foi constituída pelas infames milícias Janjaweed, que aterrorizam populações negras 20 anos atrás.

Adam Rojal, porta-voz dos deslocados de Darfur, denunciou um ataque paramilitar ao campo de Abu Shook, neste mesmo contexto, ao deflagrar um incêndio que destruiu a área, matou 13 pessoas e forçou os residentes a um novo deslocamento.

“O que a região de Darfur está vivendo, especialmente a cidade de al-Fasher, no estado de Darfur do Norte, é crime de guerra, crime de lesa-humanidade e punição coletiva da população civil”, observou Rojal ao Middle East Eye. “Todos estão fadados a morrer de fome ou devido aos bombardeios indiscriminados cometidos pelas partes em conflito. Os combates têm de parar imediatamente. É urgente abrir corredores humanitários e permitir que a ajuda chegue aos mais necessitados, exauridos pela fome e vivendo sob condições horrendas indescritíveis”.

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Al-Sadig al-Nur, porta-voz do Movimento de Libertação Nacional, grupo antes rebelde, liderado pelo governador de Darfur, Minni Minawi, afirmou que os esforços conjuntos de ex-rebeldes, civis e militares repeliu os esforços das Forças de Suporte Rápido para cortar os suprimentos da cidade e asfixiar sua população.

“As Forças de Suporte Rápido chegaram até mesmo a fechar a principal represa na área de Golo, que representa a única fonte de água à cidade de al-Fasher, mas nossas forças conseguiram repeli-las e restaurar as operações”, declarou al-Nur.

Contudo, confrontos e ataques a comunidades ao redor de al-Fasher prosseguiram. De acordo com a Matriz de Rastreamento do Deslocamento (DMT), que abarca os esforços da Organização Internacional para a Migração (OIM), combates na periferia oeste de al-Fasher, no início de junho, deslocaram ao menos 40 famílias.

“Há relatos de mortos e feridos entre os civis”, destacou o relatório. “A situação segue tensa e imprevisível”.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 7 de junho de 2024

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