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O que realmente aconteceu nos campi, segundo estudantes judeus

Judeus antissionistas, incluindo membros do Jewish Voice for Peace (JVP), realizam orações do Hanukkah em solidariedade ao povo palestino, Chicago, Illinois, nos Estados Unidos, em 7 de dezembro de 2023 [Jacek Boczarski/Agência Anadolu via Getty Images]

Eram meados de março e as mortes pelo genocídio israelense em Gaza continuavam a aumentar exponencialmente.

Ao assistir aos horrores em tempo real, David Rosenburg* — estudante de 19 anos da Universidade de Tufts, no estado americano de Massachusetts — sentiu-se indignado e frustrado pelo fato de que as forças israelenses, com apoio dos Estados Unidos e outras potências ocidentais, estavam realizando atrocidades generalizadas contra os palestinos como parte de uma suposta resposta “justificada” às ações do Hamas em 7 de outubro, contra o sul do território designado Israel.

Determinado a assistir calado, Rosenburg passou a mobilizar um movimento antiguerra em seu campus. O estudante não apenas começou a ler e estudar sobre a região, como passou a devorar informações históricas sobre a matéria e a luta anticolonial.

Ao ler as obras seminais de Frantz Fanon sobre a guerra revolucionária argelina contra seus colonizadores franceses, Rosenburg deparou-se com uma citação de um grupo de judeus da cidade de Constantina, no noroeste da Argélia, que enfim tratou de abordar uma questão até então sem resposta.

O grupo diz ter se comprometido em resistir à França por conhecer bem a coexistência histórica entre muçulmanos e judeus na Argélia antes do colonialismo e compreender que a Europa, com sua longa história de antissemitismo, não era, de modo algum, sua aliada.

Rosenburg notou que a citação ecoou com perfeição coisas que ele já ponderava havia meses, sobre o próprio conceito da segurança dos judeus. A citação o fez perceber que, no que diz respeito à segurança dos judeus, esta jamais seria encontrada em Israel, um Estado construído sobre atos de limpeza étnica e subjugação de um povo nativo.

“Me fez perceber que lutar contra a colonização na Palestina hoje seria uma forma, em meu ponto de vista, de evitar os erros cometidos por judeus argelinos, quando a então maior comunidade judaica se alinhou aos colonizadores franceses”, explicou Rosenburg à rede Middle East Eye.

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Semanas depois, em 7 de abril, Rosenburg, com vários outros estudantes, montou um acampamento em Tufts para protestar contra o assassinato dos palestinos, ao exigir de sua universidade que desinvestisse de empresas que lucram com a ocupação de Israel na Palestina histórica.

Tufts se tornou assim um dos primeiros acampamentos antiguerra a surgir nos Estados Unidos — ainda antes da Universidade de Columbia, em Nova York. A mobilização logo atraiu a ira dos administradores e os estudantes se viram forçados a desmontá-lo. Em resposta, no entanto, decidiram erguer em seu lugar uma versão de protesto do Muro do Apartheid, construído por Israel, que corta terras palestinas na Cisjordânia.

Mais tarde, naquele mesmo mês, quando as autoridades reprimiriam violentamente o acampamento de Columbia, os protestos se espalharam por todo o país. Tufts também reergueu seu acampamento desta vez, na praça principal do campus.

Logo, os acampamentos em solidariedade ao povo palestino já tomavam cerca de cem universidades em 46 estados do país. Tufts era então parte de um movimento nacional estudantil que, poderíamos dizer, se tornou o maior ato de protesto antiguerra desde a Guerra do Vietnã, na década de 1960.

Acampamento de solidariedade a Gaza na Universidade de Columbia, em Nova York, em 22 de abril de 2024 [David Dee Delgado/Getty Images]

Diferentes cores

Os acampamentos, que se espalharam por universidades públicas e privadas, exibiram uma enorme diversidade de cores.

Tendas foram instaladas nas praças ou gramados das posições centrais dos campi, para dar justamente na vista dos administradores. Os estudantes montaram estruturas para auxiliar seu protesto: bibliotecas, pontos de distribuição de água e alimentos, postos de primeiro-socorros, banheiros, áreas de oração, cursos e palestras.

Amarraram cartazes nas árvores e penduraram bandeiras palestinas nas estátuas e nos postes de luz. Passavam a noite em sacos de dormir em suas tendas e preparavam seus trabalhos da universidade sob a luz de abajures alimentados por inversores de corrente elétrica.

A imprensa corporativa, no entanto, preferiu retratá-los de outra forma. Ao tomar suas deixas dos administradores e de grupos sionistas, os estudantes foram difamados como “antissemitas”, financiados por “agentes externos” para promover o “terrorismo”, uma retórica perigosa que abriu caminho à ingerência política e à brutalidade policial.

A polícia americana interveio contra estudantes que protestavam contra Israel e prendeu muitos deles enquanto participavam nos protestos em apoio a Gaza na Universidade do Sul da Califórnia . [Grace Hie Yoon/ Agência Anadolu]

Os raríssimos incidentes de antissemitismo — na ampla maioria dos casos, conduzidos por não-alunos ou mesmo estudantes e provocadores pró-Israel, que queriam sabotar os protestos — logo assumiram as manchetes.

Contudo, como os mais organizadores se cansaram de explicar, os acampamentos eram uma continuidade direta do movimento antiguerra das décadas passadas; e o chamado pelo desinvestimento de Israel era parte de um apelo da sociedade civil palestina para combater o apartheid, em nome da dignidade dos povos e seus direitos por liberdades básicas, como movimento e habitação.

Embora os acampamentos tenham sido planejados por uma coalizão vasta de grupos e agremiações, alicerçados em décadas de trabalho de ativistas e acadêmicos palestinos, que fundamentaram o discurso sobre a libertação da Palestina nos Estados Unidos, os organizadores confirmaram que um aspecto crucial de suas ações permanecia obscuro: o papel de estudantes judeus antissionistas na organização e execução dos atos.

No epicentro do movimento de protesto na Universidade de Columbia, em Nova York, destacaram os organizadores, estavam judeus que exerceram papéis de liderança junto a seus pares muçulmanos, árabes ou palestinos.

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Quando a reitoria de Columbia suspendeu os membros da agremiação Estudantes por Justiça na Palestina (SJP), em novembro de 2023, por seus protestos contra a guerra de Israel a Gaza, as mesmas acusações foram postas contra a secção local do Jewish Voice of Peace (JVP), de tal modo que judeus antissionistas também foram punidos.

“A narrativa mainstream era que eles seriam ‘judeus manipulados’, quando na verdade era alguns dos protagonistas dos acampamentos e do movimento estudantil em apoio ao povo palestino, de maneira geral, em particular, desde o início de outubro”, relatou Maryam Alwan, líder estudantil palestina de Columbia, ao Middle East Eye.

“Sou imensamente grata aos meus colegas judeus que contestaram o noticiário — em particular, porque os conheço bem e vi o assédio e o ostracismo que sofrem por parte da Hillel [organização judaica pró-Israel no campus] e seus pares judeus, incluindo até mesmo membros de suas próprias famílias”, acrescentou Alwan.

Em vários dos acampamentos nos Estados Unidos, judeus antissionistas eram maioria. Foi assim que estudantes judeus solidários protegeram seus pares muçulmanos, árabes e palestinos, grupos mais vulneráveis à hostilidade e incitação de professores e alunos sionistas, de perigos em potencial.

Judeus antissionistas na vanguarda

Em um dos primeiros acampamentos, em Stanford na Califórnia, ainda em novembro, estudantes árabes confirmaram que seus colegas judeus assumiram grande parcela da responsabilidade pelas ações, incluindo ao dormir no local para manter a mobilização, enquanto alunos palestinos buscavam maior segurança em seus dormitórios.

Ainda assim, a retórica sobre supostos estudantes violentos, antissemitismo flagrante e ativistas fanáticos não se dissipou.

Conforme uma pesquisa divulgada no começo de maio pela organização sionista Hillel, cerca de 61% dos alunos judeus haviam denunciado “linguagem antissemita, pejorativa ou ameaçadora contra o povo judeu durante os protestos em seus campi”. Outros 63% haviam supostamente alegado se sentirem menos seguros por conta das manifestações e 58% por conta dos acampamentos.

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As estatísticas, entretanto, assim como anedotas similares, foram logo desmentidas por seus colegas judeus nos acampamentos.

Uma leitura mais cuidadosa da pesquisa da Hillel, por exemplo, mostra sua associação — perniciosa — dos conceitos de antissionismo e antissemitismo, ao vincular críticas legítimas às políticas coloniais de Israel ao racismo antijudaico.

Em artigo para a revista Time, Raz Segal, pesquisador do Holocausto e de Estudos sobre Genocídios Modernos e professor da Universidade de Stockton, na Califórnia, reiterou que “aqueles que acusam os manifestantes de antissemitismo parecem desconsiderar que muitos judeus estão entre eles, nos acampamentos, ao sugerir, por inferência, que judeus só podem ser judeus se apoiarem Israel ou se denegarem qualquer sentimento pró-Palestina”.

Ainda em maio, centenas de estudantes judeus em todo o país assinaram uma carta de repúdio para objetar as alegações de que as manifestações nos campi teriam qualquer natureza antijudaica.

“A narrativa de que os acampamentos de solidariedade aos palestinos são antissemitas por definição é parte de um esforço de décadas para diluir as linhas entre as críticas ao Estado de Israel e o antissemitismo”, destacaram os 750 signatários judeus da carta em questão. “Trata-se de uma narrativa que ignora o grande número de estudantes judeus que participam e ajudar a comandar os acampamentos como verdadeira expressão de nossos valores judaicos. Ignorar a participação judaica neste movimento não é apenas incorreto, como é também uma tentativa capciosa de promover acusações infundadas de antissemitismo”.

Os próprios estudantes judeus que participaram dos acampamentos indicaram que, de fato, foram os grupos e colegas sionistas ou agentes externos, como as forças policiais, que tornaram o ambiente perigoso.

Policiais prendem membros do coletivo antissionista Jewish Voice for Peace durante protesto pró-Palestina em frente ao Museu Metropolitano de Arte (Met), na região do Central Park, em Nova York, nos Estados Unidos, em 7 de fevereiro de 2024 [Yuki Iwamura/Bloomberg via Getty Images]

Mesmo quando os estudantes se reuniram na escala de centenas para ocupar pátios e gramados e, eventualmente, o prédio administrativo, os manifestantes demonstraram uma disciplina notável, apesar de sofrer provocação, intimidação e violência.

Em Vermont, por exemplo, três estudantes palestinos, que vestiam o lenço tradicional de seus ancestrais, o kefiyyeh, foram baleados em outubro. Devido às lesões, um deles ficou paraplégico.

Por meses, nas universidades de Harvard, Columbia e Princeton, dentre outras, alunos foram assediados continuamente por grupos pró-Israel, que expuseram seus rostos em outdoors, carros de propaganda e cartazes, ao rotulá-los como antissemitas. Alguns dos alunos foram perseguidos por poderosas famílias sionistas em Harvard e outros campi.

Em Columbia, em janeiro, grupos sionistas apelaram a um agente químico malcheiroso, notoriamente utilizado como arma pelas forças israelenses na Palestina ocupada, para atacar manifestantes antiguerra. Na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), em maio, turbas de apoiadores sionistas, sob financiamento externo, investiram contra o acampamento e agrediram alunos.

A mídia e os acampamentos

Em diversos acampamentos por todo o país, estudantes relataram como manifestantes de todas as fés dividiram o pão, organizaram grupos para tratar de problemas e oraram em congregação em diversos idiomas.

Nas tardes de sexta-feira, alunos judeus ajudavam a estender cobertores e lençóis para que seus colegas muçulmanos tivessem privacidade em suas orações. À noite, era a vez dos judeus conduzirem suas preces do Shabbat.

Alguns dos professores transferiram suas aulas aos acampamentos, para o desgosto da reitoria. Alguns docentes receberam até mesmo cartas de alerta contra conduzirem as aulas na área externa, mas seguiram em solidariedade de todo modo.

Léa Sainz-Gootenberg, estudante da Universidade de Chicago, observou ao Middle East Eye que aqueles que estavam fora dos acampamentos pareciam possuir dificuldade em entender a capacidade de coesão do movimento de protesto. Conforme seu relato, era como se caíssem de paraquedas na situação e não tivessem sequer interesse em saber o contexto da questão palestina, tampouco o rigor em mostrar que os acampamentos foram o ápice de um longo semestre de apelos aos reitores para que aderissem ao lado certo da História.

Como apontou Danielle K. Brown, professora de jornalismo da Universidade do Estado de Michigan, em artigo à rede The Conversation, a imprensa parecia mais interessado em pautar o espetáculo, ao problematizar cartazes e faixas, de maneira sensacionalista, do que em conhecer o conteúdo das demandas estudantis. Brown corroborou que os movimentos “que buscam objetar o status quo são os mais vulneráveis a receber uma cobertura inicial que os enquadra como criminosos, irrelevantes, triviais ou elementos ilegítimos do sistema político”.

A situação em campo, porém, era muito diferente.

Conforme a Páscoa Judaica (Pessach), com seu tema de libertação dos escravos judeus no Egito, coincidiu com o início dos acampamentos, no fim de abril, muitos estudantes organizaram jantares tradicionais nos locais de protesto.

Agnes Lin, graduanda recente da Universidade da Califórnia em Los Angeles e uma das organizadoras do acampamento local, destacou a importância de realizar o Seder — o jantar tradicional do Pessach — de maneira que ecoasse a luta por libertação do povo palestino. Lin comentou ter sido criada em uma comunidade sionista, doutrinada a crer que a existência de Israel como Estado colonial seria crucial para sua segurança como cidadã judia.

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Seu relato corrobora as dificuldades de “desaprender” as ideias passadas por gerações, à medida que o sionismo judaico se baseia em instilar o medo e o trauma, ao associar antissionismo e antissemitismo.

“Nos ensinam a ter muito, muito medo de qualquer coisa de fora, alheia àquilo que já conhecemos, e somos ensinados a ter medo, muito medo do antissemitismo”, explicou a graduanda da Califórnia. “Manipulam o legado de genocídio [contra os judeus] como uma fonte para incitar o medo e o terror”.

Foi apenas quando fez amizade com uma colega palestina que relatou a experiência de sua família — incluindo detenção, roubo de casas e terras, deslocamento à força, casos diários de racismo e violento apartheid — que Lin começou a compreender a extensão da doutrina imposta por parentes, professores e rabinos.

Sua visão de mundo caiu por terra. “Sua história não poderia ser verdade enquanto eu continuasse a acreditar no sionismo”, elucidou Lin.

Estudantes judeus que participaram dos acampamentos invocaram também o conceito judaico de tikkun olam, ou “reparar o mundo”, como razão teológica para se unirem ao movimento de protesto pela libertação do povo palestino. Para eles, este apelo incluía ainda questões como igualdade socioeconômica, justiça climática, liberdade religiosa, direitos políticos e direitos à terra — para todos os povos, sem discriminação. De fato, em franco contraste ao sionismo, sem qualquer base no medo.

“Quando eu penso em reparar o mundo, vejo um mundo melhor neste acampamento”, disse Lin.

De maneira similar, Tobias Lodish, líder da secção do Jewish Voice for Peace no Colégio Ocidental da Califórnia, declarou ao Middle East Eye se sentir especialmente motivado, como um judeu americano, a se envolver na luta e esclarecer cada vez mais que exigir que os palestinos tenham direito à vida não quer dizer, de modo algum, exterminar os judeus.

Diametralmente oposto aos jargões contra os acampamentos e as acusações capciosas de antissemitismo, Lodish observou: “Reconheço minha posição como judeu e o poder que tenho em enfatizar aspectos reais, com base na História, de amor e transformação, de minha identidade e cultura judaica. Penso que, ao ressaltar esses aspectos de nossa vida e de nossa cultura, sou capaz de deixar clara a distinção entre a ideologia de ódio do sionismo e a ideologia de amor que o judaísmo oferece. Ao fazê-lo, eu não somente deixo claro que antissionismo não é antissionismo, como mostro que o sionismo corre contra os próprios valores e ideais judaicos”.

Uma nova geração?

Na Universidade de Nova York (NYU), onde alunos e professores se colocaram do lado oposto de administradores e notáveis que promoveram uma das primeiras campanhas para suspender doações, os manifestantes corroboraram não se surpreender diante da alta representação de judeus entre suas fileiras.

“Estudantes e aliados judeus na NYU constituem cerca de um terço do acampamento e estão na vanguarda das ações de protesto dentro e nos arredores do campus”, apontou a agremiação local Alumni for Justice in Palestine ao Middle East Eye.

“Apoiadores judeus constituem um grande número de nossas assinaturas, muitos deles reiterando que seus valores judaicos por direitos humanos e responsabilidade social e ambiental foi precisamente o que os motivou a defender a Palestina”, explicou o grupo. “O movimento por libertação da Palestina é um movimento que transcende fronteiras sectárias, religiosas, raciais, de gênero ou classe”.

O envolvimento de estudantes judeus nos acampamentos confirmou percepções cada vez mais prevalentes de que o compromisso da comunidade judaica para com Israel e o projeto sionista está minguando.

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O professor e ativista Norman Finkelstein, filho de vítimas do Holocausto, em seu livro Knowing too much: Why the American Jewish Romance with Israel is Coming to an End — em português, Sabendo demais: Porque o romance entre judeus americanos e Israel está chegando ao fim, sem publicação traduzida —, recorda que “duas décadas atrás, soldados israelenses passeavam pelos campi americanos para serem saudados como ‘heróis de guerra’ por estudantes judeus. A Hillel costuma arrastá-los em turnês, a fim de persuadir os alunos judeus de que os soldados israelenses em questão não seriam, na verdade, criminosos de guerra”.

“No entanto”, acrescenta Finkelstein, “certa vez motivo de orgulho para jovens judeus americanos, Israel é hoje uma ave agourenta”.

As ofensivas de Israel a Gaza entre 2008 e 2009 e também em 2012 levaram alguns dos membros da comunidade judaica a uma mudança de postura. Porém, foi a agressão de 2014, ao coincidir com o surgimento do movimento Black Lives Matter (BLM), que deu impulso a uma nova geração de ativistas judeus que traçam paralelos entre a violência policial nos Estados Unidos e a subjugação dos palestinos em suas terras.

“Não acho que devemos esperar nada diferente de nossos colegas judeus, sentados na mesma sala de aula que pares diversos e com a mesma curiosidade intelectual, como parte de nossa comunidade”, sugeriu Heba Gowayed, professora do departamento de sociologia da Universidade de Nova York. “O que escuto de meus alunos judeus é que, para eles, há uma nova camada de sentimento que ecoa o refrão ‘Nunca mais é nunca mais para todos’, que costumam repetir”.

“Portanto”, reafirmou Gowayed, “penso que sua identidade judaica, além da impressão entre alguns deles de que esta mesma identidade é usada como arma em nome desse genocídio, ou que se tornaram parte do noticiário como pretexto para atacar e reprimir seus colegas, é que os motiva a se rebelar e proclamar: ‘Nossos ancestrais sofreram e viveram o genocídio e não queremos que isso aconteça com ninguém mais”.

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Ativistas notam que o advento de grupos como If Not Now (INN) — coalizão de jovens que reivindica o fim do apoio dos Estados Unidos à ocupação israelense —, assim como a presença cada vez mais marcante do Jewish Voice for Peace (JVP), é característico de uma nova tendência. Em fevereiro, o If Not Now destacou ao Middle East Eye enxergar uma nova onda de apoio entre os judeus americanos.

Nossa reportagem confirmou as tendências de mudança, ao verificar que cada vez mais jovens judeus americanos rejeitam o apoio a Israel e suas ações como prerrogativa de sua própria identidade.

Em abril, o Centro de Pesquisa Pew revelou que judeus adultos com menos de 35 anos, na melhor das hipóteses, estão divididos sobre a guerra em Gaza. Em torno de 52% dos entrevistados alegaram considerar a conduta israelense como “aceitável”, contra 42% que declararam ser “inaceitável”. A pesquisa, contudo, descobriu também que 61% dos judeus americanos entre 18 e 34 anos de idade apoiam o envio de ajuda humanitária dos Estados Unidos à população civil de Gaza.

Não obstante, embora o apoio a Israel ainda seja prevalente na comunidade judaica e, sobretudo, em suas organizações mainstream, há tendências de queda. As associações sionistas lutam contra isso, ao tentar influenciar a percepção judaica sobre suas vidas e experiências nas universidades, incluindo ao associá-la a pressupostos teológicos e até mesmo fundamentalistas.

Sainz-Gootenberg, de Chicago, afirmou compreender as dificuldades de muitos jovens judeus nos Estados Unidos em separar as coisas, em grande parte, devido à associação doutrinária adotada pela comunidade. “É frustrante”, comentou Sainz-Gootenberg, no entanto, “quando o sentimento antissionista é imediatamente silenciado sob alegações de antissemitismo, porque, pessoalmente, creio que meus valores judaicos e gerações de judeus progressistas, que lutaram por direitos trabalhistas e por direitos universais, são veementemente opostos ao que acontece agora mesmo em Gaza”.

Lin, de Los Angeles, reiterou ser fundamental entender a patologia do medo como um fator determinante. Para superá-la, é preciso esforço, educação e acolhimento, além de um processo árduo para desaprender preconceitos.

Rosenburg, de Tufts, somou outro problema à lista, como obstáculo a um diálogo maior e aos avanços do movimento de protesto. Para ele, mesmo judeus antissionistas ainda têm um caminho a trilhar, à medida que priorizam, muitas vezes, a “segurança judaica”, ao contrapô-la ao direito legítimo do povo palestino de resistir à ocupação.

“Muitas organizações judaicas antissionistas ainda caem na armadilha de normalizar a ocupação”, alertou Rosenburg, “como seu tudo que estava acontecendo antes de 7 de outubro fosse aceitável e não exigisse resistência. Nós, como judeus antissionistas, em vez de insistir na tese de uma política de ‘tolerância’ e criticar a linguagem utilizada por palestinos para denunciar o genocídio imposto a eles, precisamos estar conscientes de que é nosso papel combater o sionismo em nossas próprias comunidades”.

“Umas das razões pela qual muitos judeus brancos asquenazes apoiam Israel é porque são — e me incluo nessa categoria — colonos que vivem em terras roubadas”, reiterou Rosenburg. “A ideologia do sionismo não é diferente da ideologia de colonialismo de assentamento que deu origem aos chamados Estados Unidos”.

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Alwan, organizadora palestina de Columbia, admitiu que é difícil, por vezes, determinar os contornos da conversa, dada a importância posta à voz de ativistas judeus. “Trata-se de uma tensão árdua de navegar porque, por um lado, queremos concentrar a questão na experiência palestina, porém, por outro, a imprensa corporativa tende a valorizar o impacto da comunidade judaica acima de todo o resto e, muitas vezes, sequer busca o diálogo com os estudantes palestinos. Quando muito, é na esperança de fazer com que nos desculpemos ou expliquemos preconceitos e incidentes espetacularizados”.

No fim de abril de 2024, após mais de seis meses de genocídio, com 30 mil palestinos mortos até então, em torno de 78% dos judeus americanos entrevistados pelo Centro de Pesquisa Pew, dentre 18 e 34 anos, ainda consideravam a “guerra de Israel contra o Hamas” como legítima. Cerca de 61% ainda apoiavam a assistência militar dos Estados Unidos à ocupação e 63% negavam “motivos válidos” para que os grupos de resistência palestinos combatessem Israel. Ainda assim, um número inédito de 31% reconheceu a validade das razões de resistência.

Libertação de todos 

Para alguns, levou semanas. Para outros meses. Contudo, até o fim de maio, a maioria dos acampamentos nos Estados Unidos já havia sido desmantelado à força.

Em diversas universidades, as polícias municipal e estatal — e até mesmo as chamadas forças de contraterrorismo — foram convidadas a agredir seus estudantes e dar fim aos protestos que capturaram as manchetes em todo o país e no mundo.

Policiais atacam acampamento de solidariedade ao povo palestino de Gaza na Universidade da Califórnia da Los Angeles (UCLA), Estados Unidos, em 2 de maio de 2024 [Qian Weizhong/VCG via Getty Images]

Dependendo do contexto, os organizadores se viram coagidos a chegar a algum tipo de acordo com a administração das instituições de ensino.

Em Tufts, os estudantes, todavia, recusaram capitular ao acordo e escolheram manter a luta por mais outro dia.

Para muitos, foi a escala de violência e a percepção de que Israel continua a influenciar, de maneira desproporcional, as instituições de ensino superior no país que os levou a voltar para a casa. Ainda assim, os estudantes buscaram novas formas de expressar sua solidariedade. Em cerimônias de graduação, muitos ergueram bandeiras palestinas ou puseram os ombros os lenços nacionais alvinegros, os keffiyehs, quando não evocaram seu apoio em discursos às turmas.

Lin, de Los Angeles, relembrou um período, quando tinha apenas 16 anos de idade, em que militou pela Associação de Assuntos Públicos Israelo-Americana (AIPAC) — o maior e mais influente grupo de lobby sionista nos Estados Unidos, que explora a política do medo para mobilizar, desde muito cedo, seus apoiadores. Lin contrapôs a experiência com as motivações que a levaram a lutar pela libertação da Palestina: “Aqui, não somos motivados pelo medo, mas sim por um cuidado profundo com as pessoas — por um compromisso em construir um mundo em que queremos viver”.

“O acampamento é exemplo disso”, destacou. “Criamos o mundo em que vivemos”.

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Alwan consentiu, ao enfatizar que, apesar das acusações de que os estudantes estejam criando “espaços inseguros” e “prejudicando” a vida nos campi, para aqueles corajosos o bastante para participarem, há um vislumbre do passado e do futuro.

“Meus amigos me contam sobre conversas que tiveram com seus avós, os quais muitas vezes não conseguem imaginar seus netos almejando um mundo no qual a segurança dos judeus não mais vem à custa das vidas e da liberdade do povo palestino”, explicou Alwan. “Mas esses acampamentos são um microcosmos que prova o contrário, quando estudantes judeus protegem as preces dos muçulmanos de incidentes de assédio, onde realizamos celebrações interreligiosas do Seder ou do Shabbat”.

“Meus amigos judeus são essenciais à essa luta e não consigo imaginar uma Palestina livre sem que possamos viver juntos, da mesma forma que meus avós sempre disseram que conviviam com amigos e vizinhos judeus, antes do sionismo”, concluiu Alwan.

* Alguns dos nomes dos estudantes entrevistados foram alterados para protegê-los de possíveis represálias.

Reportagem originalmente publicada em inglês pela rede Middle East Eye (MEE) em 3 de julho de 2024.

Pesquisa adicional por Violet Barron. 

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