No coração de São Paulo, maior metrópole da América Latina, jaz a caótica e fervilhante Rua 25 de Março. Esta vertiginosa alameda é flanqueada de ambos os lados por uma curiosa amálgama de restaurantes, lojas e negócios que atraem milhares de consumidores.
Entretanto, essa rua movimentada é também um dos pontos de encontro da vasta comunidade libanesa no Brasil, como se vê pelos restaurantes árabes nas áreas ao redor. Sua presença não é resultado da globalização contemporânea, ou da natureza cosmopolita da cidade. Ao contrário, as raízes dessa comunidade — e seu impacto em São Paulo — são ainda mais profundas.
Este é o caso de Raful, um dos muitos restaurantes libaneses da 25 de Março, fundado por dois irmãos em 1960, Tannous e Raffoul Doueihi, pouco após chegarem do Líbano. Raful, assim como muitos outros restaurantes populares de culinária estrangeira, tem hoje diversos endereços em São Paulo, ao refletir assim o empreendedorismo da diáspora e sua altíssima contribuição e sua capacidade de integração social e cultural no Brasil.
Enorme diáspora com raízes profundas
Para compreender a dimensão e o impacto da diáspora libanesa, devemos regressar ao final do século XIX, quando a primeira onda de imigrantes levantinos chegou ao litoral brasileiro. No fim da década de 1870, cerca de 150 mil imigrantes chegaram do Líbano e da Síria contemporâneos em busca de um futuro melhor.
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“Na época, o Líbano passava por uma gravíssima crise econômica”, destacou ao Middle East Eye o professor e jornalista Diogo Bercito, especializado em migração árabe ao Brasil. “A economia tinha como base a exportação de seda, sobretudo à França, mas o mercado entrou em colapso. No fim do século XIX, pessoas nascidas na região começaram a migrar ao Brasil”.
E não pararam de chegar. Estima-se que a comunidade libanesa no Brasil abarca hoje entre sete e dez milhões de pessoas, segundo o Ministério de Relações Exteriores. Caso correto, quer dizer que há atualmente mais cidadãos libaneses no Brasil do que no próprio Líbano.
Os libaneses que aportaram no país no fim do século XIX eram predominantemente cristãos, em fuga dos arbítrios e do sectarismo do Império Otomano, que dominava grande parte do Oriente Médio na época. Nesta conjuntura, muitos dos primeiros imigrantes foram documentados como “turcos” pelas autoridades de então. Os libaneses se assentaram, em particular, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará e Goiás.
“O Brasil era um destino bastante atrativo”, explicou Bercito. “Havia essa compreensão de que a maioria das pessoas queria chegar à Europa ou aos Estados Unidos, mas o Brasil havia realizado uma transição pacífica da monarquia à república, algo diferente de outros países na região. Era, portanto, considerado um país bastante estável, além de um lugar com muitos recursos a serem explorados”.
Integração industrial e crescimento econômico
A integração e a influência da comunidade libanesa sobre a cultura e sociedade brasileira se deu gradualmente, motivada em particular por um espírito trabalhador. Imigrantes que chegaram da Europa tinha vantagem sobre seus homólogos levantinos, ao aportarem já com casa e emprego no interior do país.
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Por conta disso, imigrantes do Líbano e da Síria ignoraram, em grande maioria, a agricultura, ao optarem pelo comércio e se estabelecerem como mascates nas zonas urbanas. Viajavam todo o país vendendo toda uma variedade de bens, trabalhando 20 horas por dias e visitando as áreas mais remotas do território nacional. Dentro de duas gerações, dominaram o comércio. Por volta de 1895, sírios, libaneses e palestinos representavam 90% dos mascates de São Paulo.
Eventualmente, imigrantes libanesas avançaram na pirâmide econômica, com foco particular na indústria têxtil, onde conquistaram novamente o sucesso.
“Imigrantes sírios e libaneses catalisaram o comércio popular ao popularizar ideais como venda parcelada ou em atacado”, comentou Bercito. “Essas eram práticas que não pareciam existir no Brasil, e tiveram enorme impacto”.
Em 1907, o comércio de varejo e armazéns consistia em 80% dos negócios árabes de São Paulo.
De mascates à presidência
A influência da comunidade libanesa não se restringiu ao comércio, ao se estender também ao desenvolvimento social e intelectual do Brasil.
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“Havia vários jornalistas e intelectuais entre os imigrantes da virada do século, era, na verdade, uma comunidade bastante variada. Trabalharam como comerciantes e mascates, mas não foi a única coisa que fizeram”, acrescentou Bercito.
À medida que a comunidade libanesa ganhou importância, uma cena notavelmente vibrante no setor de jornalismo também emergiu ao atrair a diáspora. Entre 1880 e 1929, 95 publicações em árabe já existiam no Brasil, comparado a apenas 82 na Palestina na ocasião.
Após melhor se firmar economicamente no Brasil, a diáspora libanesa começou a canalizar seus recursos à ascensão social.
“As comunidades começaram por se envolver no comércio e acabaram por instruir seus filhos a profissões liberais e áreas da indústria e construção civil”, recordou Assad Frangieh, presidente da União Libanesa no Brasil, ao Middle East Eye. “Aos poucos, a comunidade estabeleceu raízes em todas as direções e passou a contribuir com a modernização da sociedade”.
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A ascensão social culminou na presença de nomes libaneses na política brasileira — incluindo o ex-presidente Michel Temer, o ex-governador do estado de São Paulo, Paulo Maluf, e o ministro da Fazenda e ex-prefeito da cidade homônima, Fernando Haddad.
A certa altura, cerca de 10% do Congresso Nacional tinha descendência libanesa.
“Ao participar efetivamente na construção do país, marcas da imigração libanesa são vistas hoje em hábitos, valores e na gastronomia”, observou Frangieh.
Proeminência gastronômica
Quem sabe, o impacto mais perdurável e sensível da diáspora libanesa no Brasil vai muito além da política — está na gastronomia.
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“O impacto mais notável é talvez na comida”, destacou Frangieh. “Vivemos uma situação muito interessante em que alguns pratos que podemos considerar sírios ou libaneses, como o quibe, o tabule ou a esfiha, já têm presença nas mesas do Brasil. Não é preciso ir a um restaurante árabe para comer quibe — você o encontra em qualquer bar, em qualquer esquina. Ninguém vê isso como comida étnica — se tornou comida brasileira”.
O chef Georges Barakat é parte de uma onda muito mais recente de imigrantes libaneses, tendo chegado ao Brasil há 18 anos em busca de melhores oportunidades, apesar de seu diploma em engenharia mecânica. Hoje, no entanto, é um chef estabelecido em São Paulo.
Gosto muito de voltar às minhas raízes. A cozinha é uma forma para que todos nós, libaneses, mesmo aqueles que não nasceram lá, mantenham contato com sua ancestralidade. Ao cozinhar, nos conectamos com nossas raízes, com nossos ancestrais, com nossos país.
A influência gastronômica se vê muito além da 25 de Março e restaurantes especializados. Uma das escolhas mais populares em fast food no Brasil é a rede Habib’s, que vende até 600 milhões de esfihas todos os anos.
A história e o impacto da diáspora libanesa têm sentido de orgulho nas palavras de Frangieh.
O Brasil nos deu cidadania, respeito, dignidade e futuro e sua relação com o Líbano nos trouxe um entendimento das raízes e dos valores culturais, religiosos e humanos uns dos outros. Para mim, é muitíssimo gratificante ser brasileiro, e ter filhos brasileiros, ao mesmo tempo em que reconheço e me orgulho de minhas raízes árabes e libanesas”.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 21 de julho de 2022.