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MEMO entrevista jornalista Muath Amarneh, após nove meses preso por Israel

Fotojornalista Muath Amarneh é resgatado após ter o olho atingido com uma bala de borracha por forças israelenses durante a cobertura de um protesto contra o Muro do Apartheid e os assentamentos ilegais na cidade de Hebron (al-Khalil), na Cisjordânia ocupada, em 15 de novembro de 2019 [Mamoun Wazwaz/Agência Anadolu]

Nos quase dez meses de genocídio israelense em Gaza, somado à escalada na Cisjordânia, uma categoria foi particularmente alvejada: profissionais de imprensa.

Estima-se ao menos 160 jornalistas mortos pela ofensiva indiscriminada contra Gaza desde outubro. Muitos outros foram sequestrados pelas forças ocupantes, tanto em Gaza quanto na Cisjordânia, junto de milhares de civis, desaparecidos em uma rede carcerária que reproduz violações brutais, como tortura, violência sexual e execução sumária.

Muath Amarneh é um cinegrafista palestino que perdeu seu olho esquerdo a uma bala de borracha israelense após flagrar o assassinato do jovem palestino Omar, de somente 19 anos. Na ocasião, Muath usava um colete à prova de balas e um capacete com identificação de imprensa, como nos contou em outubro de 2021.

Muath convive com o fragmento da bala alojado em sua cabeça, sem poder ser retirado pela proximidade com o cérebro, sob o risco de lesões permanentes ou até a morte. Muath corre o risco ainda de que o fragmento se desloque e agrave suas condições de saúde. Ainda assim, manteve seu trabalho.

Amarneh conversou com o MEMO após sua recente soltura das cadeias de Israel. Veja a seguir seu relato.

Agora que está em casa, você está seguro? Dar essa entrevista te coloca em risco?

É impossível sentir-se seguro. Qualquer coisa que eu faça, Israel está observando. Se dou uma entrevista, trabalho ou participo de uma manifestação, eles estão sempre vigiando. Dar entrevistas é especialmente perigoso, principalmente se eu aparecer em vídeos ou fotos, pois qualquer coisa que façamos pode ser usada como “prova” contra nós.

Como, e por qual motivo você foi preso?

Em 16 de outubro de 2023, soldados israelenses invadiram minha casa e me apresentaram um mandado de prisão. Eles me instruíram a ficar calmo e a não fazer nada que lhes desse motivo para me agredir.

Não é a primeira vez que você se tornou uma vítima da ocupação, você acha que isso tem alguma relação com sua profissão de jornalista?

Fiquei conhecido dentro e fora da Palestina quando um soldado israelense atirou em meu olho em 2019. Quando fui preso, alegaram que o motivo era incitação e sabotagem contra o Estado de Israel devido às minhas publicações nas redes sociais. Como jornalista e, principalmente, como palestino, meu trabalho é expor os crimes da ocupação contra os palestinos na Cisjordânia e as dificuldades e o genocídio enfrentados pelos palestinos em Gaza. No entanto, eles consideram que a verdade é uma forma de sabotagem.

Como foi o tratamento que você recebeu durante a sua detenção?

Assim que me colocaram no jipe, os soldados começaram a me provocar com palavrões, sabendo que certas palavras são extremamente ofensivas para nós, muçulmanos. Eles queriam que eu reagisse para ter um motivo para me agredir. Como permaneci em silêncio, aumentaram a provocação dizendo que iriam [Muath não conseguiu pronunciar] minha mãe e minha irmã, e ameaçaram fazer coisas horríveis com minha esposa. Tive que me manter calmo. Mesmo assim, começaram a me agredir ali mesmo, dentro do jipe. Quando cheguei na prisão, disseram para eu agradecer a Deus por ter chegado vivo, pois muitos palestinos chegam mortos.

Mesmo antes de ser preso, sempre tive medo por causa do fragmento que tenho na cabeça. No meu trabalho, tenho que tomar cuidado para não cair ou bater a cabeça, pois isso poderia me prejudicar bastante. Não é um ferimento comum em qualquer parte do corpo — é no cérebro. Quando fui preso, no entanto, meu medo aumentou. Não há um único palestino que não tenha sido espancado. Pensei muito nisso enquanto eles me batiam. Fui agredido por três dias até perder a consciência. Quando acordei, disseram novamente para agradecer a Deus, pois nem todos sobrevivem. Naquele momento, entrei em desespero e chorei. Eu não queria voltar para minha família como um cadáver.

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Que tipo de condições você encontrou nas instalações onde foi detido?

Assim que cheguei ao presídio de Megiddo, fui interrogado por sete horas seguidas. Depois fui colocado junto aos outros prisioneiros palestinos. As refeições eram entregues em quantidades insuficientes, e perdi 20 quilos nos primeiros três meses. Além disso, os alimentos eram insossos, sem sal ou açúcar, tudo para tornar nossa vida ainda mais difícil.

Você teve acesso a cuidados médicos adequados durante a sua detenção?

No meu caso, o pior foi que retiraram meus óculos. Eu não tenho o olho esquerdo e o direito não enxerga bem. Passei os primeiros cinco meses sem óculos, sem enxergar nada, como se estivesse em uma prisão dentro de outra prisão. Além disso, tenho diabetes e, mesmo com meu histórico médico em mãos, não me permitiram tomar meus remédios, o que me causou muita dor de cabeça. Após muita insistência do meu advogado, começaram a me dar um medicamento, mas não me informaram o que era nem para que servia. Perguntei várias vezes, mas nunca obtive uma resposta. Tive medo de tomar o remédio sem saber sua finalidade, pois poderia agravar minha situação ou até me matar. Na primeira semana, recusei tomar, mas as dores de cabeça pioraram e, sem saber quanto tempo ficaria preso, acabei cedendo.

Fizeram um exame de sangue e disseram que minha saúde estava boa e que eu não precisava dos meus remédios. Alegaram que a diabetes estava controlada por conta do medicamento que me davam. A verdade, no entanto, é que eu não estava conseguindo me alimentar bem.

Qual é a condição de um prisioneiro palestino nos presídios israelenses?

Não há qualquer forma de limpeza na prisão. Não podemos tomar banho ou realizar qualquer tipo de higiene. Passamos meses sem banho e, quando finalmente nos permitiam, nos davam um único sabonete para ser compartilhado por todos os presos. Após o banho, éramos obrigados a vestir as mesmas roupas sujas e malcheirosas que já estávamos usando há meses.

Quando foi libertado, Muath precisou ser internado para tratar uma infecção de pele generalizada, algo que afeta a maioria dos prisioneiros palestinos.

Teve a oportunidade de falar com sua família durante a detenção?

Não tive contato com minha família. Após seis meses em Meggido, fui transferido para al-Naqab. Quando meu advogado foi me visitar, informaram a ele que eu havia sido transferido, mas não sabiam para onde. Minha família só descobriu onde eu estava porque um prisioneiro palestino foi solto logo após a minha chegada e comunicou meu paradeiro à minha família.

Como foi o processo judicial?

No tribunal, alegaram que meu trabalho era uma incitação contra Israel. No entanto, nem eu nem meu advogado tivemos acesso às provas, então não sabemos o que tinham ou se tinham algo contra mim. Não há muito o que fazer. Você não pode simplesmente exigir sua liberdade apenas porque não há provas. Eles realmente não têm nada contra mim ou contra outros palestinos — simplesmente prendem quem querem e alegam ter provas secretas.

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Durante os interrogatórios, os interrogadores muitas vezes respondiam às perguntas por mim, como “confesse que você fez tal coisa”, “confesse isso”, “você estava em tal lugar”. Também me deram um documento de confissão para assinar, no qual eram descritos absurdos sobre as acusações contra mim. Recusei assinar algo que não tinha feito, e o acusador respondeu: “Se você não vai assinar, então vai se f**er!”

Esse é o sistema judicial “legal” de Israel. Eles desrespeitam absolutamente todos os direitos dos palestinos. Assim como outros palestinos, eu estava sob detenção administrativa, o que dificulta muito o acesso à justiça, já que você não sabe do que está sendo acusado, quais são as “provas” contra você, ou quanto tempo será mantido preso. Você não sabe nada.

Que direitos humanos você acredita que foram violados durante sua detenção?

Eles desrespeitam completamente os direitos humanos dos prisioneiros palestinos. Não havia comida adequada, nem condições mínimas de higiene, e passei os três primeiros meses com a mesma roupa. Durante todo o inverno [com temperaturas estimadas em até 0 °C durante a noite], sofremos com o frio, pois não recebemos roupas adequadas para a estação. Nenhum dos nossos direitos foi respeitado.

Alguma organização de direitos humanos ou sindicato tentou intervir no seu caso?

Sim, recebi a visita de algumas organizações humanitárias e pedi ajuda para sair da prisão ou, pelo menos, receber tratamento médico adequado. No entanto, infelizmente, isso não fez diferença. Israel não se preocupa com justiça, nem com a opinião e as ações do mundo. Eles simplesmente não demonstram nenhuma preocupação. Dentro da prisão, os palestinos são vítimas de violência, tortura e até assassinatos. Não recebemos comida, medicamentos ou qualquer tipo de assistência. É frustrante saber que, mesmo com a presença de organizações humanitárias, Israel permanece indiferente.

Como foi a sua experiência ao ser libertado? 

Eles me chamaram, e eu pensei que seria interrogado novamente, mas, para minha surpresa, me deram um documento para assinar. Quando perguntei o que era, disseram que era para minha liberação, mas não informaram quando eu sairia. Fiquei ao mesmo tempo muito feliz e chocado. Após nove meses de prisão, estava prestes a reencontrar minha família, no entanto, também estava deixando para trás muitos amigos, prisioneiros que, assim como eu, não haviam cometido nenhum crime.

Senti-me extremamente confuso.

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Você enfrentou dificuldades em retomar sua vida profissional e pessoal após a prisão?

Já se passou uma semana desde que fui libertado. Minha família e eu ainda vivemos com o medo constante de uma nova prisão. Nos primeiros dias após a libertação, fiquei internado e ainda estou fazendo exames médicos para entender a infecção na minha pele e identificar os medicamentos que me foram administrados. Os médicos palestinos me orientaram a evitar contato físico com minha esposa e meus filhos para não transmitir a infecção — que nem sabemos exatamente o que é.

Você continua a fazer reportagens após sua libertação? 

O que eles querem é que paremos de expor o que está acontecendo. Querem nos intimidar para que desistamos de lutar pela nossa liberdade. Mas eu não vou parar. Nada, absolutamente nada, me fará desistir de lutar por uma Palestina livre, para que possamos viver em paz. Não importa se for pelo povo palestino ou por qualquer outro povo oprimido — onde houver opressão, estarei lutando.

O que você gostaria que as pessoas entendessem sobre a realidade da ocupação?

É importante conscientizar as pessoas ao redor do mundo sobre a existência da Palestina como um país e o sofrimento do seu povo. Nós, palestinos, enfrentamos opressão, prisões, mortes. Todos os dias perdemos nossos filhos, nossas casas, empregos e entes queridos. Infelizmente, vivemos em uma situação em que estamos confinados em uma grande prisão, com a Palestina sendo dividida arbitrariamente e a imposição de cada vez mais checkpoints para restringir nossa liberdade. Essa realidade dificulta a possibilidade de uma vida normal. O que acontece na Palestina não é normal e as pessoas precisam compreender isso! Mas não basta apenas entender, é preciso que o mundo não se acostume e não se cale diante dessa situação. Não podemos considerar isso como algo normal, portanto, precisamos muito de que o mundo não esqueça da Palestina e se posicione contra essa injustiça.

Você tem alguma mensagem para dizer aos brasileiros e as outras pessoas do mundo?

Sim eu tenho uma mensagem para os jornalistas do Brasil e do mundo para que nunca parem de lutar por nós. Para todos de dentro ou fora da Palestina, no geral, que não parem de lutar por nós. Não parem de lutar pela Palestina. Façam o que puder para acabar com isso que está acontecendo — esse genocídio, essa matança. Postem vídeos nas redes sociais escrevam artigos, deem palestras, conversem com os familiares, com os amigos, façam o que estiver ao seu alcance, participem de manifestações — todas essas coisas ajudam. Nós sabemos que Israel não está nem aí para o que está acontecendo, mesmo com tudo que o mundo tem mostrado e tem falado, eles não se importam, mas é importante que não paremos de falar da Palestina. não parem de falar da Palestina! Não nos esqueçam!

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Os crimes cometidos contra Muath, Shireen, Murtaja e muitos outros jornalistas palestinos são acompanhados de perto pelo ativista Lucas Siqueira. Essas e outras histórias fazem parte do livro “Artigo 19: Violações contra a Liberdade de Opinião e Expressão na Palestina”, disponível online.

Confira também a lista de jornalistas assassinados por Israel compilada pelo articulista.

Esta entrevista, com exclusividade, contou com a tradução do árabe de Khaled Latif.

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