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Nas margens do Tigre: A história oculta da música iraquiana

Músicos de maqam, gênero musical tradicional do Iraque, no início do século XX [Wikimedia/Reprodução]

Há um instante logo no início do premiado documentário On the Banks of the Tigris — em português, Nas margens do Tigre —, de Marsha Emerman, em que o protagonista e colaborador da obra, Majid Shokor, questiona a Naji Cohen, um senhor idoso, judeu e iraquiano, que vive exilado na Austrália, como se sente ao olhar para seu violino. Seu instrumento repousa sobre uma mesa em frente ao homem, com sua silhueta marcada refletida sobre o tampo polido de mogno. O sorriso de Cohen desaparece de seu rosto, seus olhos mostram-se abatidos, e ele recai em silêncio antes de se voltar à câmera — desta vez, em lágrimas. Sem dizer uma palavra, coloca gentilmente seu violino de volta ao estojo e fecha a tampa com um baque surdo.

“Perdi minha vida”, ele diz enfim. “Isso é parte da minha vida. E eu a perdi. Perdemos a nossa identidade”.

Trata-se de uma cena íntima e comovente e uma introdução adequada ao filme em si, que busca contar a história, pouco lembrada, do passado judaico da música iraquiana. Cohen, como muitos judeus iraquianos de sua geração, cresceu em um país próspero e cosmopolita pós-independência, em uma era na qual a literatura, a música e a cultura prosperavam. O epicentro era Bagdá, coração do Iraque e lar ancestral de uma grande comunidade árabe-judaica. Além de carregar uma rica história de 2.500 anos nas terras antigas da Mesopotâmia, no começo do século XX, os judeus iraquianos conquistaram destaque como alguns dos músicos mais influentes e populares da época, com figuras de renome nacional como Saleh al-Kuwaity e Salima Mourad Pasha. Nos anos de 1940, contudo, e sobretudo após a Nakba — em árabe, “catástrofe” —, quando foi criado o Estado de Israel, em 1948, mediante limpeza étnica dos palestinos nativos, essa era de ouro dos judeus iraquianos se viu diante de um fim abruto e ocasionalmente violento. Com a opinião pública voltada contra eles, incitada por políticos de cunho populista e autoritário, incluindo incidentes de ataques contra judeus e suas propriedades, e novos incentivos de migração ao novo Estado de Israel — sob a prerrogativa de abdicar de sua identidade árabe —, judeus iraquianos fugiram ao país em números sem precedentes. Em 1951, restavam meros 15 mil judeus no Iraque, de uma população original de mais de 121 mil pessoas.

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Contudo, os judeus iraquianos não foram apenas fisicamente exilados do país. Após a ascensão do Partido Ba’ath, na segunda metade do século XX, sobretudo sob o regime totalitário de Saddam Hussein, a história dos judeus iraquianos foi gradualmente, e de maneira eficaz e conveniente, apagada da memória coletiva nacional.

“Li um artigo em árabe e descobri que grande parte dessas músicas que cresci ouvindo foram compostas por músicos judeus”, afirma Shokor, no filme. “Eu não sabia nada dos músicos judeus no Iraque. Sabia nem mesmo que havia judeus vivendo ali”.

Desta forma, começa a árdua jornada de Shokor para explorar a história e a influência da arte judaica na música iraquiana. Shokor parte de seu lar suburbano em Melbourne, na Austrália — onde sua família buscou asilo após fugir do Iraque em 1995 — até Israel — para conhecer judeus iraquianos levados à diáspora — e eventualmente a Londres, onde ele e seus amigos acabam por realizar um concerto em celebração do patrimônio judaico do Iraque, através da música.

Neste sentido ao menos, o filme segue um roteiro um tanto previsível. Contudo, ainda assim, traz à luz narrativas interessantes sobre o papel dos judeus no Iraque e serve de importante emenda à versão censurada da história imposta pela Ba’ath. O que torna a obra tão cativante, como se demonstra por seus numerosos prêmios, incluindo Melhor Documentário no Festival Internacional de Cinema de Bagdá, é a importância histórica do tema e de seu material, especialmente no que diz respeito à falta crônica de ensino no próprio Iraque sobre sua própria história nacional. Muitos iraquianos conhecem as canções e mesmo suas letras, mas não têm a menor ideia de que foram compostas por judeus ou dissidentes políticos, mais tarde expropriados até mesmo de sua autoria pela narrativa sancionada pelo Estado.

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O filme brilha em seu retrato humano e repleto de nuances dos judeus iraquianos — a maioria idosos, exilados em Israel ou ao redor do mundo, sem poder voltar para a casa, apesar de preservar seus olhos um sentimento de nostalgia sobre os dias dourados das décadas de 1920 e 1930. Naji Cohen chora em silêncio sobre seu violino nos subúrbios da Austrália; um grupo de judeus iraquianos se encontra semanalmente em Israel para tocar música, como faziam em sua terra; Yair Dalal, colono israelense filho de um judeu iraquiano ensina um grupo misto de asquenazes e mizrahim como tocar o maqam, um gênero tradicional do Iraque — estes retratos ecoam na mente do público, evocativos em sua sutileza e execução. O que também se expressa é o poder da música em reunir as pessoas ao longo de fissuras geracionais, linguísticas, culturais e mesmo sectárias — uni-las contra tudo e contra todos, sem importar a crítica ou dissidência.

Mas também são os próprios judeus iraquianos que carregam o fardo mais triste nessa obra, tanto pela perpétua saudade das gerações mais velhas, seu sentimento de perda em relação ao Iraque e suas memórias, quanto ao apagamento, desta vez por parte de Israel, da identidade iraquiana de seus filhos e netos, para que abracem uma narrativa colonial. Nascido em Israel, o filho de Saleh al-Kuwaity — quem sabe, o maior cantor e compositor iraquiano de sua época —, por exemplo, não fala uma palavra do árabe. O acontece a Yair Dalal, que, apesar de sua paixão pela música iraquiana e seu anseio em ensiná-la às gerações mais jovens, ainda assim comenta em forte sotaque hebraico: “É legal ter judeus e árabes tocando juntos” — ao reproduzir, possivelmente sem querer, a velha propaganda colonial israelense que busca retratar as identidades árabe e judaica como mutuamente excludentes, apesar da comunidade milenar de judeus palestinos, em plena harmonia com seus concidadãos cristãos e muçulmanos, até o surgimento de Israel, e mesmo das raízes do próprio Yair, filho de judeus iraquianos.

Vale notar que o enfoque da obra no elemento judaico da música iraquiana no começo do século XX, como consequência, põe de lado alguns artistas igualmente importantes, que porventura não eram judeus. O marido de Salima Mourad, por exemplo, aclamado cantor de maqam, Natham al-Ghazali, era muçulmano. Também era um dos amores da vida de Saleh al-Kuwaity, que inspirou algumas de suas canções mais famosas. O filme também cai no erro de afirmar que a música Foug al-Nakhal (“Acima da tamareira”) foi composta por Saleh al-Kuwaity, embora o anteceda em muitos anos, como uma canção folclórica que ele costumava interpretar. O filme toma como foco os judeus esquecidos do Iraque; seu recorte não conta, portanto, um outro lado da história: a diversidade, a convivência e o cosmopolitismo de Bagdá e de todo o país antes da ingerência colonial na região. Para seu público alvo, no Ocidente, que pouco conhece a cultura iraquiana, entretanto, On the Banks of the Tigris proporciona um retrato intimamente humano e comovente de uma história perdida do Iraque — e deve, sim, ser aplaudido.

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