Perdidos no Líbano: O drama dos refugiados sírios que vivem no país

Sheikh Abdo, um refugiado da Síria, não tinha nada quando chegou ao Líbano — no entanto, não hesitou em oferecer abrigo a concidadãos que atravessaram a fronteira. Em um primeiro momento, havia pessoas dormindo em seu jardim, até que o sheikh conseguiu permissão de uma entidade beneficente local para administrar um lote de terras próximo de sua residência. Uma vez que adquiriram as terras, Abdo comprou tendas. Com o tempo, se tornou responsável por cerca de 70 famílias.

Embora tenham fugido da guerra, o combate se tornou uma presença em suas vidas. Mesmo no silêncio da noite, no campo de refugiados, era possível sentir estremecer o chão e ouvir o som dos bombardeios que choviam sobre as aldeias e cidades sírias logo além da fronteira.

O conflito sírio entrava em seu sétimo ano, com aproximadamente 400 mil mortos e 13 milhões de deslocados até então. Desde então seis anos se passaram e, apesar de uma aparente mitigação da guerra, o número de mortos se aproxima de 600 mil. Ao menos 1.5 milhão daqueles deslocados buscaram abrigo no vizinho Líbano.

Lost in Lebanon — em tradução livre, Perdidos no Líbano —, documentário realizado por Sophia e Georgia Scott, que integrou a programação do Festival Internacional de Cinema do Human Rights Watch, em sua edição de 2016, acompanha o sheikh Abdo e outros três refugiados sírios, enquanto tentam construir uma nova vida no Líbano, após fugirem da devastação em seu país natal.

 

Com uma população de 4.4 milhões de habitante e a maior proporção de refugiados em todo o mundo, o Líbano tem seus próprios problemas. Em janeiro de 2015, o país deu fim a sua política de portas abertas aos refugiados sírios e impôs uma série de restrições contra eles. De um dia para o outro, cidadãos da Síria precisavam de vistos especiais, documentação específica e prova de rendimento para residir no país. Com efeito, de 72% dos bebês de pais sírios nascidos no Líbano sequer foram registrados com certidões de nascimento, sob o risco prevalente de se tornarem apátridas.

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É contra essa incessante burocracia no país anfitrião que os sírios tentam reconstruir suas vidas. Mwafak, também personagem de Perdidos no Líbano, é um dos cerca de 600 mil sírios que carecem de registro no Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) — Mwafak não desejava ser rotulado como tal. Por vezes, não parece que Mwafak esteja errado. Dos um milhão de refugiados registrados no país, somente cinco mil conseguiram deixá-lo sob programas de reassentamento.

Quando não está trabalhando em suas esculturas, Mwafak ensina arte às crianças no campo de refugiados de al-Jarahia, a 15 km de distância da fronteira síria, no Vale do Bekaa. Em um momento particularmente comovente, a câmera registra seus alunos tracejando alguns versos de rap, ao mostrar que até mesmo sua infância foi roubada pela guerra. “Queria assistir Tom e Jerry e não Ban Ki Moon e John Kerry”, cantam as crianças. “Queria assistir as notícias só para saber do tempo”.

Nemr, que fugiu da Síria para escapar do serviço militar obrigatório, trabalhava como professor voluntário na ocasião do filme. “Queria que as crianças voltassem à escola, para formar cientistas e não combatentes”, comentou Nemr. Conforme estimativas, três ou quatro gerações de crianças já sofriam com o analfabetismo, de maneira que não apenas as chances de reconstrução do país foram impactadas como também as opções dessas crianças de construírem suas vidas. A falta de oportunidades é citada historicamente como razão pela qual jovens rapazes aderem à guerra.

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É a Shatila, o campo de refugiados palestinos construído em 1948, que a câmera nos leva para acompanhar um quarto personagem do documentário. Segundo Reem, ao orientar a equipe pelas instalações, Shatila é “feio e desumano” e “ninguém deveria ter de viver aqui”. Quando os sírios fugiram da guerra, dobraram a população local, a 40 mil pessoas, muito embora careçam de serviços básicos como energia elétrica ou água e saneamento.

Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) revelou que 2016, ano em que o documentário foi lançado, foi o ano mais letal para as crianças na Síria até então, com 652 vítimas fatais. Reem reportou à câmera que o impacto da guerra sobre as crianças transcende fronteiras, ao relembrar ter visto um menino pular de um telhado. “Algumas das crianças testemunharam as atrocidades do Daesh [Estado Islâmico], bombas de barril e uma série de invasões militares. São crianças bastante traumatizadas”, confirmou Reem. Mais tarde, conversa com uma mãe que se nega a enviar seu filho à escola por conta de um passado de abuso sexual.

Perdidos no Líbano mostra como, conforme escalava a guerra na Síria, os refugiados se viam presos tanto dentro quanto fora do país, sob circunstâncias cada vez piores, em vez de melhorarem. O documentário é muito bem filmado, apesar de repleto de desespero. Em uma reunião comandada por Reem, um homem sumariza a extensão do pânico que assola seus concidadãos: “Não podemos retornar ao nosso país e nem renovar nossa residência. Não podemos partir por mar. Por que não nos exterminam de uma vez e acabam logo com isso?”

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