Em El Salvador, os sucessivos massacres cometidos por Israel contra a Faixa de Gaza expuseram divisões entre a grande comunidade palestina e sua liderança política no país centro-americano. A diáspora palestina de cerca de cem mil pessoas radicadas em El Salvador se viu dividida entre as contradições do presidente pró-Israel de origens palestinas e a demanda por solidariedade a seus conterrâneos em sua duradoura luta contra a ocupação.
O populista salvadorenho-palestino Nayib Bukele, de 42 anos, tem sangue palestino. Seus avós eram cristãos de Belém e de Jerusalém que migraram a El Salvador no início do século XX. Seu pai, Armando Bukele Kattan, converteu-se ao Islã e se tornou um proeminente imã na cidade de San Salvador e eloquente defensor da causa palestina.
Apesar dos laços de sua família com a região, Bukele costuma manter seu silêncio sobre os atos de agressão israelense contra Gaza, que deixaram dezenas de milhares de mortos ao longo dos anos. Para a comunidade palestina, no entanto, o silêncio de Bukele não é surpresa.
Simaan Khoury, presidente da União Palestina da América Latina, admitiu não esperar qualquer resposta do atual presidente e ex-prefeito de San Salvador. “Como comunidade, esperamos um pronunciamento”, lamentou Khoury em conversa com o Middle East Eye. “Dadas as suas raízes, Bukele pode ir além e não apenas defender nosso povo como denunciar os crimes de Israel”.
“Amigo de Israel”
Quando foi eleito à presidência, em 2019, Bukele foi celebrado pela imprensa sionista como um “amigo de Israel”. Em 2015, Bukele foi descrito pelo embaixador israelense em El Salvador como um “parceiro de cooperação”.
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Pouco após tomar posse, Bukele estabeleceu um acordo multimilionário no setor de saúde com a organização israelense conhecida como Fundação Jerusalém, segundo o qual El Salvador teria recebido em torno de US$3 milhões canalizados a sua polícia e Forças Armadas.
Ainda assim, o embaixador da Autoridade Palestina no país, Jebril Burini, insiste em alegar estar contente com a relação entre as partes, muito embora busque minimizar a influência das raízes de Bukele em sua política externa. De acordo com Burini, “o fato de que o atual presidente tem origens palestinas não é uma vantagem, tampouco uma desvantagem para o relacionamento de El Salvador com a Palestina. Nosso relacionamento é de respeito”.
Em 2018, Bukele, na ocasião prefeito de San Salvador, visitou Israel em uma viagem promovida pelo Estado sionista durante a qual se reuniu com os prefeitos de Tel Aviv e Jerusalém ocupada, além de realizar preces no Muro das Lamentações.
“Sua visita não foi bem-recebida pela comunidade palestina em El Salvador”, reconheceu Burini. “[Bukele] considerou que ir a Israel naquela ocasião beneficiaria El Salvador, mas não foi o caso. Israel tentava tomar vantagem de seus contatos na América Central e das demandas dos países da região para obter conquistas políticas próprias”.
A viagem foi vista, portanto, como reflexo das contradições de um homem que, um ano antes, havia recebido em sua cidade a prefeita palestina de Belém, Vera Baboun, ao declarar que “seus laços com a cidade não poderiam ser medidos por dinheiro ou influência política, mas sim amor e emoção”.
Bukele, contudo, se distanciou publicamente da luta palestina, ao manter como um enigma seu posicionamento sobre a questão palestina. Em entrevista de 2019 à rede AJ+, fez um raríssimo e hermético comentário sobre a Palestina: “Tenho orgulho de minhas origens palestinas. Gostaria de ver um Estado palestino próspero. Se há um Estado, ele pode prosperar. A tecnologia é mais importante do que a terra, e o povo palestino pode ter um Estado — sim, menor do que era em 1948; sim, menor do que era na época dos Acordos de Oslo. Está bem, pois vamos mostrar que podemos ter um Estado próspero, pacífico e aberto aos negócios”.
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O presidente salvadorenho, em geral, não é visto como uma figura particularmente partidária — marcado por declarações religiosas notoriamente ambíguas —, sempre cauteloso com qualquer dano colateral de uma posição firme sobre qualquer matéria.
Conforme Amy Fallas, acadêmica salvadorenha da Universidade de Santa Barbara, na Califórnia, o silêncio de Bukele reflete uma abordagem cujo enfoque é interno. “Suas prioridades políticas no país superam sua aliança à causa palestina. Ele é até capaz de afirmar, ‘tenho orgulho de ser palestino’, mas em termos de solidariedade palestina, de resistir à ocupação ou de buscar uma solução equilibrada, prefere olhar à Palestina pela lente dos negócios ou da tecnologia, e não da soberania, da autodeterminação ou da erradicação dos equívocos históricos”.
“Bukele basicamente diz, ‘não importa se voltarmos a 1948, a terra não importa’, que é o exato oposto do que dizem os ativistas palestinos”, destacou Fallas. “Deste modo, busca minimizar ou sequer abordar o assunto, ao falar de outras formas pelas quais os palestinos podem prosperar — coisas à parte das demandas fundamentais do povo palestino”.
No que se refere a Israel e Palestina, a cidade de San Salvador não é menos contraditória do que seu presidente. A capital centro-americana abriga uma embaixada palestina, um Clube Árabe-Salvadorenho, um complexo habitacional chamado Villa Palestina, com ruas de nome temáticas, e mesmo uma Praça Yasser Arafat.
A Praça Israel fica a dois minutos de distância da Praça Palestina, e tampouco está sozinha entre as instalações da capital dedicadas ao Estado ocupante. Em San Salvador, há também um centro habitacional chamado Nueva Israel, ou “Nova Israel”, além de uma Praça Estado de Israel e uma Avenida Menachem Begin na cidade de San Miguel. Begin foi o premiê de Israel responsável por ordenar a invasão ao Líbano em 1982, que causou a morte de 20 mil pessoas entre libaneses e palestinos.
Vínculos fortes
Para Khoury, presidente da União Palestina da América Latina, a comunidade é bem integrada a seu novo lar, embora mantenha fortes vínculos com a Palestina. “Há laços espirituais e de afeto para com sua terra-mãe”, comentou Khoury ao Middle East Eye.
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A conexão se reforça e evidencia pelos corriqueiros protestos na capital salvadorenha contra os ataques israelenses contra Gaza, Jerusalém e Cisjordânia. Testemunhar de longe os ataques — a mais de 12 mil km de distância — não é novidade aos palestinos de El Salvador, mas suas ações reafirmam a relevância e força da diáspora na América Latina.
O Estado moderno de El Salvador não pode ser separado dos influentes nomes e sobrenomes árabes e palestinos que povoam sua história recente: Safies, Nassers, Zablahs, Handals, Bahaias, Simans, Hasbuns, Sacas, Bukeles e outros que colaboraram na construção do país.
A comunidade se assentou em El Salvador em meio colapso do Império Otomano, no início do século XX. No decorrer de décadas, conquistou pouco a pouco valiosa reputação nos negócios, ao se consolidar entre a elite política e econômica do país. Mesmo antes da vitória de Bukele, a eleição de 2004 foi disputada por dois candidatos de raízes palestinas: o conservador Antonio Saca e o progressista Schafik Handal — com a vitória do primeiro.
Da mesma maneira, a proximidade com o Estado colonial sionista não é novidade, à medida que El Salvador e Israel compartilharam laços militares íntimos, em particular, nas décadas de 1970 e 1980 — em meio à violenta guerra civil e à intervenção militar dos Estados Unidos no território salvadorenho. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa de Paz de Estocolmo, cerca de 83% das importações militares de El Salvador entre 1975 e 1979 vieram de Israel, incluindo mediante treinamento israelense à polícia secreta salvadorenha. Em 1981, El Salvador recebeu em torno de US$21 milhões em créditos de armas de Israel, conforme solicitação de Washington.
Para o presidente salvadorenho, esta é uma agenda política que vale a pena seguir. Bukele é um político por natureza, que põe sua carreira acima das raízes. “Para Bukele, a Palestina não passa de uma memória distante”, reiterou Yousef Aljamal, acadêmico e coautor de As comunidades da diáspora palestina na América Latina e o Estado palestino. “Bukele integra um sistema político que prefere estar de acordo com a extrema-direita e tem, portanto, bons laços com Israel e com os Estados Unidos. Trata-se de uma posição da classe política que se beneficia de boas relações com Israel e com os Estados Unidos. Muitas pessoas tinham esperanças de que ele alinharia a si mesmo com suas raízes, mas penso se tratar de uma exceção. Age como indivíduo e não recebe qualquer influência da comunidade palestina. Seu sangue simplesmente não importa”.
Durante o mandato de Donald Trump na Casa Branca, Bukele se mostrou particularmente afoito em fazer amizade com os Estados Unidos e consolidar intimidade política entre as partes. O par se reuniu em setembro de 2019, ocasião que Bukele descreveu como “muito legal”, apesar de Trump descrever El Salvador como um “país de merda”.
Esperanças de mudança
Dada a aproximação entre El Salvador e Israel e a influência que o Estado colonial assumiu nos últimos anos sobre os vizinhos Honduras e Guatemala, não surpreenderia ver Bukele investir em uma nova era de amizade com a ocupação.
No entanto, os sucessivos ataques de Israel contra o povo palestino podem fechar a janela de aproximação entre as partes. Bukele, um homem obcecado com sua popularidade, redes sociais e percepção pública, se vê forçado a navegar com cuidado em nome de sua própria persona.
“Com as mudanças que acontecem na Palestina, a comunidade palestino-salvadorenha ficaria realmente indignada com Bukele caso se aproxime ainda mais do Estado de Israel”, argumentou Aljamal. “Com a recente situação na Palestina e a renovação da solidariedade global, não penso que Bukele ousaria ir além em fortalecer relações com Israel. Bukele pensaria duas vezes sobre a resposta a suas ações e não me parece ser o melhor momento”.
Khoury ainda tem esperanças de que a terra ancestral de Bukele ainda tenha algum peso sobre as decisões do presidente, sob o risco de desagradar a diáspora. “Sou um cidadão salvadorenho e apoio meu governo e meu país. No entanto, meus sentimentos sobre a Palestina são outros. Sou um ativista e defensor de nossa causa. Tenho certeza de que Bukele foi criado para apoiar a nossa casa e tenho certeza de que o sangue é mais denso do que a água”.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 16 de junho de 2021.