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Uma Odisseia orientalista da parceria anglo-americana BBC—NBC

Soldados estrangeiros sobrevoam o deserto do Mali, em operação de contraterrorismo, em 1° de junho de 2015 [Philippe Desmazes/AFP via Getty Images]

Parece que toda produção à televisão que se passa no Norte da África ou no Oriente Médio tem uma cena obrigatória na qual uma mulher é apedrejada até a morte. Esta cena no drama Odyssey (Odisseia), da rede britânica BBC, produzido pela emissora dos Estados Unidos NBC, é particularmente criativa — o espectador vê tudo acontecer por trás da venda que cobre a cabeça da vítima, enquanto homens barbados e iracundos, em vestes tradicionais, atiram pedras contra ela com suas próprias mãos.

A protagonista de Odisseia é a sargento Odelle Ballard, agente especial do exército dos Estados Unidos, interpretada por Anna Friel — atriz que se tornou conhecida por seu papel na novela britânica Brookside, quando fez um personagem que sepultou seu pai debaixo do pátio e beijou outra mulher, ainda na década de 1990. Mais recentemente, na série anglo-americana, Friel participou de uma missão militar ao Mali, incumbida de caçar “terroristas islâmicos”.

Logo nas primeiras cenas, o público é informado de que o exército americano matou a tiros um dos mandachuvas da Al Qaeda, ocasião na qual Ballard descobre uma série de arquivos codificados que provam que uma corporação americana (SOC) enviou milhões de dólares à organização terrorista, para financiar suas atividades. Ballard transfere os documentos a um pen-drive, que carrega no pescoço — e as coisas logo caminham de mal a pior. A empresa percebe que Ballard detém a informação e deseja reavê-la; um atentado a drone no deserto mata toda a unidade de Ballard, ao deixá-la como a única sobrevivente, com todos em casa pensando estar morta; Ballard se junta a uma rota de peregrinação a Timbuktu, ao se passar por um homem surdo — muito embora pareça ainda Anna Friel com um turbante —; tudo isso para tentar escapar da SOC e levar seu pen-drive de volta para a casa em segurança.

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Em certo momento dessa intrincada corrente de eventos, Ballard foge de uma cadeia improvisada com a ajuda de um rapaz chamado Aslam, mas não antes de passar alguns minutos de um dilema no qual o jovem pondera se deve matá-la ou salvá-la do grupo de mercenários da SOC. Em seguida, Aslam fotografa Ballard e envia as imagens à rede Al Jazeera — embora não dê para saber porque ou como ele tem contato direto com a Al Jazeera no meio do deserto malês. Aslam alerta à sargento, “se eles te encontrarem, vão te apedrejar até a morte” — foge aos roteiristas a ironia de que enviar a fotografia de Aslam à Al Jazeera exporia a heroína mais cedo ou mais tarde.

A imagem é obtida pela imprensa nos Estados Unidos e — de alguma maneira — reúne a família de Ballard, o futuro primeiro-ministro da Grécia, um ativista cibernético, um ex-procurador americano, o filho de um jornalista famoso e uma personagem ambígua que parece fingir ser uma repórter, mas veste sempre preto, sugerindo ao público ser uma espécie de vilã.

De volta à jornada no deserto, uma complicação inesperada se impõe à viagem. Ansar al-Deen, uma gangue terrorista local, consegue finalmente a fotografia de Ballard; os militantes chegam de caminhonete ao local onde está a protagonista, para capturá-la, armados até os dentes, instilando medo nos peregrinos. Sua caracterização é feita, nos mínimos detalhes, para que remetam a terroristas assustadores de um imaginário que se tornou comum no Ocidente. São também amigos de membros da Al-Qaeda e — ao menos a princípio — compartilham um objetivo comum: decapitar Ballard como uma manifestação de “vingança com o império americano”.

Há uma série de tentativas de criticar as guerras ocidentais em terras islâmicas, assim como as ações do governo e das corporações e a prática bastante opaca de financiar pessoas que não deveriam ser financiadas — quem sabe, um aceno ao comércio e à indústria de armas dos governos ocidentais. Há mais de uma menção ao fato de que o nome de Aslam significa literalmente “paz” — algo que parece remeter a um gesto de boa vontade no sentido de reafirmar o estereótipo do “bom muçulmano”, como uma espécie de redenção aos terroristas. De fato, é paternalista.

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Odyssey representa precisamente o tipo de produção orientalista que conhecemos tão bem: camelos pelo deserto, medinas movimentadas à noite e o exaustivo programa de encantar serpentes, que servem para alimentar retratos simplistas e estereotipados — senão racistas — de uma parte complexa e diversa de nosso mundo. É melhor evitá-lo — já temos bastante desse tipo de besteira na nossa televisão.

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