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Festival de Qalandiya denuncia tecnologias de vigilância a serviço da ocupação

Muro do apartheid israelense, na região de Qalandiya, perto da cidade de Ramallah, na Cisjordânia ocupada, em 31 de maio de 2006 [Lior Mizrahi/Getty Images]

Em meados de 2016, o 3º Festival Internacional de Qalandiya, importante iniciativa de arte contemporânea palestina, reuniu realizadores de todo o mundo com o intuito de colocar seu país no mapa cultural global. A programação de então se organizou sobre o título “Este mar é meu”, ao abranger narrativas cujo mar é protagonista, com temas em torno de recursos naturais, direitos e retorno.

Em Londres, as cineastas Judy Price e Sarah Beddington exibiram três curta metragens, ao realizar uma conversa com o público na Galeria P21.

Assemblage

O evento abriu com Assemblage, curta no qual Price compilou imagens de arquivo do Museu de Guerra Imperial, documentando o lançamento de balões de vigilância sobre as terras da Palestina. O rigoroso regime da rotina militar parece em desacordo com a fluidez da trilha vocal que permeia a narrativa e as imagens serenas do lançamento dos balões. A trilha ostenta, porém, um toque metálico que sugere os ritmos mecânicos da vigilância e da dominação colonial. À medida que o balão ascende aos céus, um suspiro percorre a audiência, em uma espécie de esperançosa antecipação por sua libertação das amarras terrenas e suas fronteiras ou, quem sabe, um lamento pelo começo de sua missão de mapeamento que segue até hoje, por meio dos avanços das tecnologias de drones e outros aparatos de vigilância aérea.

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A sombra do dirigível se estende por um deserto que alguém imaginaria ermo — como um lembrete do refrão colonialista: “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. A considerável habilidade curatorial de Price ganha enfoque por meio da entrada nervosa e rápida saída de cena de uma aldeia palestina nativa — um ruído marcante no cenário destinado aos assentamentos ilegais. Os fios suspensos que emergem sobre a linha de visão dos espectadores, entre o balão e sua cesta, projetam-se sobre a terra, em linhas limpas e retas que inevitavelmente lembram as fronteiras artificialmente impostas nos dias de hoje.

Reel

Em Reel, Price compila cuidadosamente materiais de arquivo voltados à preservação da memória palestina — embora fragmentada. As imagens desaparecem antes mesmo de absorvermos plenamente seu sentido, para serem substituídas por cenas que parecem coincidir com as notas vibrantes e sombrias da trilha de Johann Johannsson. Imagens são recortadas e remontadas, em aparente referência à obra de abertura Assemblage, também de Price. As imagens parecem familiares, porém fora de alcance. Grafites em inglês e árabe são invertidos na edição, criando um novo idioma quase compreensível, convidando o público a revisitar o próprio ato de ler, a fim de compreender, sob outra perspectiva, a narrativa palestina. As habilidades de Price em Reel causam um senso de estranhamento, ainda assim, identificação. Esses recortes a la documentário abarcam registros conhecidos da história, todavia impactados pela intrusão da marca incidental do arquivo — quem sabe, também uma forma de grafite.

A lógica dos pássaros

Ao se inspirar no poema persa Mantiq al-Tair — a Linguagem dos pássaros — de Attar de Nixapur, do século XII, e das procissões de Jerusalém a Nebi Musa, perto de Jericó, que transcursaram por 800 anos, até o século XX, o curta-metragem The Logic of the Birds — ou A Lógica dos Pássaros —, de Sarah Beddington, intercala rituais antigos e uma persistente modernidade que, quem sabe, seja mais bem encapsulada nos jeans e tênis listrados dos atores na tela, sob suas capas que relembram asas.

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Pássaros são centrais à visão artística de Beddington; o Vale do Jordão serve como uma das principais rotas de migração de pássaros do mundo. Na conversa que acompanhou a exibição da obra, Beddington brincou que “a única coisa capaz de abater um jato F16 israelense seria uma cegonha branca”. Com isso em mente, ao notar narrativas prévias de caráter antropocêntrico construiu-se a ideia de formular abordagens alternativas à questão palestina. O “ponto de vista dos pássaros”, ângulo vertical de câmera sobre os desertos registrados, resiste e remete ao olhar imperativo retratado previamente nas obras de Price. A metáfora da migração aviária alerta para os perigos de retornar para a “Terra Prometida”. Um pássaro-narrador aponta: “Embora os pássaros cheguem a seus destinos, suas asas estão em frangalhos”.

Pode ser tentador interpretar a alegoria ornitológica como uma forma de se libertar de restrições terrenas — assim como o balão do filme de Price. No entanto, à medida que Beddington relata sua pesquisa junto a cientistas israelenses e palestinas, aprendemos que os pássaros costumam ser capturados, categorizados e registrados por biometria. Utilizar metáforas do mundo animal sobre Israel e Palestina podem, sim, recair a uma fria desumanização das populações in loco, mas a missão de Beddington é reivindicar a figura dos pássaros tanto da ciência quanto da ficção, ao materializar um novo sentido de resistência.

O ano de 2017 foi o centenário da Declaração Balfour — documento histórico pelo qual o Reino Unido prometeu a Palestina à colonização sionista. Nesse entremeio, a terceira edição do Festival Internacional de Qalandiya avançou em sua missão de aprofundar a compreensão e representação da Palestina por meio de inovações na arte e no design, ao permitir novas possibilidades de resistência e solidariedade. Ao revisitar deste modo a história palestina, em uma cautelosa antecipação do que aguarda o futuro, quando, porventura, os refugiados tiverem respeitado seu direito de retorno, ambas as autoras — Price e Beddington — recusam-se a fugir das complexidades do que transcorre em campo.

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Encerramos essa sessão com um sentimento de esperança, que desafia as biopolíticas neocoloniais da ocupação, em sua tentativa de reivindicar não apenas a terra, como os pássaros e o espaço aéreo como um mecanismo de controle. Um membro da audiência notou que os pássaros gravados em voo parecem respeitar os sinais nas rodovias e nas encruzilhadas. E se, apontou a pergunta, as aves migratórias do Mediterrâneo Oriental de fato veem as fronteiras e os obstáculos da ocupação militar … mas insistem em suas rotas ancestrais de toda maneira?

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Palestina: quatro mil anos de história
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