O chef Andrés torres desafiou trajetórias convencionais ao construir sua carreira, ao se transformar de correspondente de guerra a um ativista gastronômico. Como fundador da ong Global Humanitaria, Torres casou sua paixão pela cozinha com um compromisso profundo para deixar uma marca positiva em zonas de conflito, por meio da linguagem universal da gastronomia.
Das ruas assoladas pela guerra na Síria aos bairros devastados da Ucrânia, o chef Torres testemunhou um sofrimento humano inimaginável. No entanto, em vez de meramente documentá-lo, o chef espanhol decidiu arregaçar as mangas e agir.
“Comecei a trabalhar com jornalismo de guerra ainda aos 16 anos, mas sempre senti a necessidade de fazer mais do que apenas cobrir em emissoras de rádio ou televisão a destruição causada pelos conflitos”, relatou Torres. “Sempre quis contribuir de alguma forma para ajudar as pessoas e é esta razão pela qual dei início à Global Humanitaria, o que me permitiu ser muito mais ativo nas áreas afetadas”.
Migrar do jornalismo às artes culinárias parece pouco ortodoxo, mas para Torres foi um progresso natural. Seu amor pela gastronomia foi uma constante por toda a sua vida e Torres logo reconheceu o poder da comida como meio de reunir as pessoas e fomentar o diálogo.
“Na mesa de Jantar, podemos falar sobre muitas coisas”, comentou Torres. “Eu queria usar esses momentos para compartilhar assuntos de solidariedade, direitos humanos e direitos humanitárias e ponderar sobre como é que podemos ajudar”.
Seu restaurante Casa Nova, em Barcelona, não é apenas um lugar para comer, mas um convite para que seus clientes reflitam sobre as discussões preponderantes no mundo. O Casa Nova ganhou uma Estrela Verde do Guia Michelin por suas práticas sustentáveis e sua aplicação de recursos em dez países diferentes, por meio da ong do chef Torres, entre os quais Ucrânia, Colômbia e Síria. Os métodos sustentáveis aplicados pelo Casa Nova se inspiram nas comunidades que Torres encontrou em suas viagens.
“Percebi quão inventivas são as pessoas, mesmo diante das piores condições”, reiterou Torres. “Suas experiências influenciaram profundamente a maneira como operamos no Casa Nova, desde a aquisição de nossos ingredientes a práticas voltadas a minimizar o desperdício”.
Ao integrar tais práticas, Torres não somente dá base a seu trabalho humanitário, como educa seus clientes sobre a importância da sustentabilidade e responsabilidade global. “Nossos clientes saem com muito mais do que o estômago cheio, saem com toda uma experiência de vida”.
Um dos esforços mais notáveis de Torres está na Síria, para onde viajou diversas vezes, cozinhando para crianças afetadas pela guerra. Suas ações incluem instalar cantinas em colégios sírios para garantir que as crianças tenham sempre o que comer e encorajar os pais a enviar seus filhos à escola, em vez de trabalho precoce.
LEIA: ‘Na Palestina, o ciclo das oliveiras dá ritmo a nossa gastronomia’
Sua abordagem combina assistência imediata com soluções de longo prazo, ao ensinar as comunidades a utilizar recursos locais para se sustentarem.
As iniciativas de Torres buscam integrar a Síria a um sistema internacional de refeitórios que operam regularmente, ao alimentar as crianças sempre que possível, mas adverte que regime no país lhes deu apenas um alvará provisório.
“Gosto de passar meu tempo com elas [crianças refugiadas] e viver como elas, a fim de entender de verdade sua luta e as formas com que lidam com a vida em condições de guerra”, destacou Torres. “É uma experiência profundamente pessoal”.
Segundo o Programa Alimentar Mundial (PAM), o número de pessoas que sofre com a fome no mundo aumentou pouco a pouco desde o ano de 2011. A Síria se tornou um dos seis países com maiores níveis de insegurança alimentar. O número de pessoas que sofre com a insegurança alimentar no país tomado pela guerra chegou a 12.1 milhões de cidadãos — mais da metade da população —, além de 2.9 milhões de pessoas que sofrem insegurança alimentar severa.
Outro projeto importante se desenvolve na Jordânia, onde a Global Humanitaria busca trabalhar com crianças refugiadas sírias. Para além de fornecer alimento, seus ativistas buscam providenciar educação e mesmo terapia através das artes, ao usar a expressão criativa como forma de cura. O projeto chega a revender os desenhos das crianças na Espanha para angariar fundos a seu serviço, ao edificar um ciclo de empoderamento e apoio.
Ao mostrar sua plena ciência do papel crítico da comida em promover o bem-estar e a resiliência entre vítimas de guerra, destacou Torres: “Alimentar-se é um direito humano essencial. Em zonas de guerra, são as crianças — nosso futuro — que estão morrendo de fome”.
Tamanha consciência o levou a Gaza ainda em novembro, onde realizou esforços para chegar a Rafah, no extremo sul. Apesar de se deparar com uma fronteira fechada, sua equipe conseguiu coordenar a entrega de suprimentos essenciais ao carregá-los em um caminhão em um checkpoint militar, para que pudessem chegar às pessoas carentes. O chefe notou ainda que, embora não possa dar detalhes específicos, age ativamente na busca das mais diversas maneiras de garantir a assistência.
LEIA: Uma mudança na retórica, não na ajuda humanitária
Apesar de seus esforços incansáveis, Torres se mostrou profundamente frustrado pela indiferença e ignorância da comunidade internacional sobre o impacto da fome severa nas zonas de guerra. Torres crê que a imprensa falha em cobrir de maneira devida tais questões, ao regularmente ignorar situações críticas que não testemunha em primeira mão. A falta de consciência alimenta sua indignação, mas também o motiva a descobrir novas maneiras de dar atenção às crises.
“Fico bem indignado pelo fato de que as pessoas continuam a ignorar as consequências graves da fome e da desnutrição. Sobretudo deste lado do mundo, na Europa, onde as pessoas comem a qualquer hora do dia. Penso que os jornalistas e a imprensa têm de fazer um trabalho muito melhor em campo para informar o público em detalhes sobre como a fome destrói cada parte do organismo, em particular, entre as crianças”.
Torres alertou que os jornalistas, muitas vezes, não chegam às áreas mais afetadas pelo conflito, deixando um vazio de compreensão e empatia entre o público global. O chef e ativista reafirmou também a importância da experiência em primeira mão, ao garantir que, para entender de verdade as dores e cicatrizes da guerra, é preciso viver junto dos afetados. É esta crença que dá forma a sua abordagem, tanto na gastronomia quando em seu trabalho humanitário.
Torres voou a Damasco na última semana, após enfim obter autorização do governo do presidente Bashar al-Assad, para cozinhar a 500 crianças, muitas das quais perderam os pais ou foram gravemente feridas pela guerra. Sua jornada acontece pouco depois de o chef espanhol ser anunciado como o nono vencedor do Prêmio Internacional Basco de Gastronomia de 2024, estimado em €100 mil, que reconhece chef que empregam seu conhecimento e sua influência para “ir além da cozinha” e criar mudanças positivas em suas sociedades e em todo o mundo. Vencedores notáveis incluem o chef José Andrés, fundador da ong World Central Kitchen (WCK), e Ebru Baybara Demir, chef turco que opera no setor humanitário.
Andrés Torres personifica a essência do trabalho humanitário. Sua mistura única entre jornalismo, gastronomia e ativismo mostra que, quando a paixão encontra propósito, o impacto certamente é bastante poderoso.
LEIA: Israel não quer apenas destruir a UNRWA, mas todos os esforços humanitários