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A Travessia: Documentário traz atenção à questão dos refugiados sírios no Egito

Refugiados sírios chegam de barco a uma praia de Lesbos, na Grécia, em 18 de março de 2016 [Guillaume Pinon/NurPhoto/NurPhoto via Getty Images]

Quando a vida no Egito se tornou dura demais para refugiados sírios que escaparam da guerra civil em seu país natal, parece não haver alternativa senão seguir jornada, como outros milhares antes deles, através do Mar Mediterrâneo, rumo à Europa.

The Crossing — ou A Travessia —, de 2015, captura essa odisseia ao recorrer a imagens gravadas de uma câmera na mão, e proporcionar assim um olhar íntimo às vidas de um grupo de amigos que embarcam em um navio pesqueiro, arranjado por uma gangue de tráfico humano, em busca de um lugar melhor e mais seguro. Como observa Rami, um dos passageiros: “Espero que o mundo entenda que muitas dessas pessoas não estão apenas em busca de uma vida melhor — quem sabe, buscam somente sobreviver”.

Ao longo do documentário, ficamos sabendo que Nabil desertou do exército na Síria, a serviço do governo de Bashar al-Assad, e escondeu-se na rede de esgotos por 17 dias, até que o grupo extremista Jabhat al-Nusra o capturou. “De fato, foi mais fácil lidar com eles do que com os egípcios”, comenta Nabil, em uma ponderação que parece ilustrar com perspicácia a precariedade das condições de vida dos refugiados sírios assentados no Egito. “Assédio. Bastante. Bem desagradável”, reitera mais tarde, ao descrever como a polícia do Egito o abordou em mais de uma ocasião, ao ameaçar prendê-lo ou levá-lo à embaixada. Neste entremeio, a missão diplomática da Síria indeferiu a renovação do passaporte de Nabil não uma, mas duas vezes.

Ao reunir relatos pessoais desses refugiados sírios, The Crossing permite ao espectador se conectar com eles como indivíduos, ou “pessoas reais”, em vez de estatísticas vagas no noticiário. No entanto, seu uso de exclusivo de testemunhos pessoais, significa que prescindir ao público fatos materiais e conjecturais sobre o tópico pouco conhecida da luta dos refugiados sírios no país norte-africano.

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Na época do filme, estimativas indicavam que 140 mil dos 261.741 refugiados no Egito eram cidadãos da Síria. Segundo um relatório da ong Refugees International, os atos de repressão do governo egípcio contra instituições humanitárias desde 2013 tiveram um impacto negativo na comunidade síria no país, assim como a difamação, discriminação e desumanização posta pela imprensa colaboracionista do regime. Os refugiados sírios sofrem com incidentes de prisão arbitrária, deportação e assédio e seus filhos e filhas são regularmente atacados até mesmo a caminho da escola. Muitas das famílias sírias, em condição de refúgio, têm dificuldades de pagar por cuidados médicos, habitação e comida, com pouquíssimo ou nenhum suporte social ou humanitário.

De volta ao documentário, vemos famílias se preparando para a perigosa jornada. Sua bagagem é modesta, à medida que os contrabandistas alertaram que seus bens podem ser jogados no mar caso representem qualquer empecilho à viagem. Sabonete, xampu, remédios de enjoo e maços de cigarro são agrupados com cuidado em pacotes à prova d’água. Uma conversa com um contrabandista é captura pela câmera, na qual revela-se que a viagem custará €6.000, e ressaltar: “Mas se o barco virar, não é problema meu”. Novamente, o espectador se vê diante de perguntas: €6.000 por pessoa ou por todo o grupo? É este o preço médio para a travessia de um refugiado pelo Mar Mediterrâneo? Como os refugiados sírios vivendo no Egito sequer conseguem juntar esse valor?

Os melhores elementos de The Crossing estão em sua capacidade de capturar a viagem por mar, um trajeto que muito ouvimos falar nos noticiários, mas raramente vemos em primeira mão, por meio de vislumbres pessoais de condições amplas daqueles a bordo. Há corpos dormindo quase uns sobre os outros e crianças urinando em sacos plásticos. A esposa de um dos passageiros revela mais tarde que, durante a jornada, ficaram sem água, forçados a beber a água residual do radiador do barco. Ainda assim, apesar das dificuldades dos dias e noites em alto-mar, há um sentimento de esperança dentre os passageiros. “A viagem foi perigosíssima, é claro, mas teve momentos bonitos também. Cantamos juntos porque tínhamos esperanças, mesmo que uma esperança vã”, conta a mulher.

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A história dos refugiados a bordo não termina quando finalmente chegam à costa. The Crossing continua a acompanhar seus personagens e as dificuldades que enfrentam ao aportarem no continente europeu. A busca por asilo, as tentativas de aprender idiomas estranhos ou permitir que as crianças continuem seus estudos, a procura por emprego digno e a luta por integração em suas comunidades anfitriãs são alguns dos milhares de desafios com que se deparam dia após dia.

O documentário The Crossing, com 55 minutos de duração, integrou a programação do Festival Internacional de Cinema do Human Rights Watch de 2016, com exibição em 15 e 16 de março daquele mesmo ano.

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