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O assassinato de Ismail Haniyeh, momento da verdade no Oriente Médio

À medida que Netanyahu busca provocar uma guerra regional, o assassinato de Ismail Haniyeh, líder político do Hamas, parece, contudo, unir os palestinos e seus apoiadores.
Ismail Haniyeh, líder político do Hamas, ao lado do arcebispo Alexios (à direita), visita a Igreja de São Porfírio, na Cidade de Gaza, em meio às comemorações do Natal ortodoxo, em 9 de janeiro de 2019 [Ali Jadallah/Agência Anadolu]

O assassinato de Ismail Haniyeh, líder político do movimento palestino Hamas, no Irã, é mais uma evidência de que há, no mundo hoje, um Estado pária, fora de controle, que pensa estar acima da lei e poder fazer qualquer atrocidade sem consequências.

Matar Haniyeh e Fuad Shukr, comandante do grupo libanês Hezbollah, representa uma perigosa escalada que deve ter como resposta uma retaliação tanto de Teerã quanto de seus aliados no Levante. O envolvimento iraniano se tornou inevitável sob a decisão de alvejar Haniyeh precisamente na capital do país.

Tudo isso põe o governo dos Estados Unidos de Joe Biden, investido politicamente em mitigar a crise em Gaza por razões eleitorais, e que tanto fala de cessar-fogo, contra as cordas. Qualquer pressão a Israel garantirá a fúria de influentes organizações de lobby sionista, enquanto ajudá-lo necessariamente resultaria em uma guerra aberta por toda a região.

Após as desastrosas guerras no Afeganistão e no Iraque, o público nos Estados Unidos deixou muito claro que não está nenhum pouco interessado em se envolver em novos conflitos no Oriente Médio.

Contudo, escalar o conflito sempre foi o plano do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, algo que deixou bastante óbvio em seu discurso ao Congresso americano, na última semana.

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Netanyahu está com problemas, porque se vê incapaz de conquistar seus objetivos de derrota total ou expulsão da Faixa de Gaza, muito menos a tão prometida aniquilação, do Hamas, seja política ou militarmente.

Netanyahu também fracassou em libertar seus reféns em Gaza, salvo um punhado, ao enfrentar cada vez mais pressão domesticamente.

Sem fim à vista

Dez meses após a deflagração do genocídio em Gaza, não há fim à vista. O fracasso do exército israelense se torna mais evidente com os recordes de sua campanha em morte e mutilação de civis, sobretudo crianças, mediante apoio e armas americanas, com um volume de bombas lançadas que supera cinco Hiroshimas.

Para além de Gaza, Netanyahu foi incapaz de conter outros fronts, levando dezenas de milhares de israelenses a serem evacuados tanto do norte quanto do sul. Netanyahu tampouco conseguiu devolvê-los a suas casas, ao falhar diante das ações militares do Hezbollah, no Líbano, e dos houthis, no Iêmen.

Pelos últimos dez meses, Netanyahu tenta restaurar o conceito de dissuasão, elemento essencial da doutrina militar israelense gravemente degradado pelas ações do Hamas em 7 de outubro. Além disso, tenta restaurar a imagem do aparato de inteligência de Israel, que também colapsou.

Netanyahu evidentemente não quer o fim da guerra. Caso a encerre sem a prometida “vitória total”, haverá um inquérito para responsabilizá-lo pelas perdas, de modo que o remova do poder. Como se não bastasse, Netanyahu enfrenta acusações de corrupção gravíssimas nos tribunais israelenses, capazes de levá-lo à prisão. É assim que o premiê simplesmente deseja a guerra e nada mais do que intensificá-la.

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Netanyahu claramente apoia o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seu vigoroso aliado, nas eleições americanas de novembro. Trump transferiu a embaixada de seu país de Tel Aviv a Jerusalém ocupada, reconheceu a “soberania” de Israel sobre as colinas ocupadas de Golã, ostracizou ainda mais a Autoridade Palestina e até mesmo assassinou o eminente comandante iraniano Qassem Soleimani — incorrendo em uma série de ações provocativas e beligerantes.

A instabilidade no Oriente Médio, a prorrogação do massacre em Gaza e as incertezas geopolíticas subsequentes tornam mais difícil que a oponente de Trump nas eleições, a vice-presidente Kamala Harris, seja derrotada em novembro, dado que a crise costuma trabalhar contra a gestão incumbente. Prorrogar e expandir a guerra faz também com que o governo de Joe Biden, cúmplice do genocídio, pareça fraco e ineficaz.

Impacto estratégico

Haniyeh, descendente de sobreviventes da Nakba, ou catástrofe palestina, nasceu e foi criado no campo de refugiados de al-Shati em Gaza. Com os anos, Haniyeh conquistou grande popularidade entre os palestinos. Haniyeh foi o primeiro-ministro do governo eleito do Hamas em 2006 e se tornou líder político do movimento em 2017.

Os palestinos viram incontáveis líderes serem assassinados por um regime colonial que busca sua eliminação de toda e qualquer maneira. Em 2004, os líderes do Hamas Abdel Aziz al-Rantisi e Ahmed Yassin foram assassinados em Gaza em somente três semanas. Diversos outros líderes palestinos foram alvejados por assassinatos, encarceramento e exílio ao longo das décadas de luta por libertação.

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Estrategicamente, o assassinato de Haniyeh não terá um impacto significativo sobre o Hamas, à medida que o grupo é plenamente capaz de substituir suas fileiras com vários candidatos a uma eventual eleição, incluindo Khaled Meshaal, Mousa Abu Marzouk e Khalil al-Hayya.

O mesmo pode ser dito do Hezbollah. Em 1992, Israel assassinou o secretário-geral do grupo libanês, Abbas al-Musawi, substituído por Hassan Nasrallah. Nasrallah tinha 31 anos na ocasião e não era conhecido; ainda assim, tornou-se uma das lideranças mais influentes do Líbano contemporâneo.

Se havia alguma dúvida de que o regime colonial sionista não tem qualquer expectativa de futuro que envolva os palestinos, muito menos lhes permita seu direto soberano a um Estado independente, já não resta alguma diante de tamanha escalada.

O Estado israelense personifica hoje hegemonia, controle, supremacismo e apartheid, ao buscar a limpeza étnica ou a subjugação dos palestinos sob seu projeto de “Grande Israel”. Netanyahu tenta há muito tempo cravar o último prego no caixão da insistente solução de dois Estados, atrás da qual Washington já não consegue se esconder.

Trata-se de um momento da verdade para todas as partes envolvidas, sobretudo diante da recente opinião consultiva do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) condenando a ocupação israelense nos territórios palestinos como ilegal. A ordem internacional que Washington buscou consolidar, em torno de si, desde a Segunda Guerra Mundial, está desmoronando. Toda a sua retórica em torno do Estado de direito, da democracia e de direitos humanos caiu por terra pelas ações de Israel avalizadas pelos Estados Unidos.

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As medidas do Estado sionista dão base ainda às acusações de crime de guerra contra Netanyahu e seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, no Tribunal Penal Internacional.

O assassinato de Haniyeh apenas tornará os palestinos mais unidos em indignação. Ele próprio chamou recentemente protestos em 3 de agosto contra o genocídio em Gaza. Com o chamado a protestos e greves gerais seguindo sem ele, parece que o atentado que ceifou a vida de Haniyeh apenas mobilizará cada vez mais o chamado mundo árabe e islâmico, para dar fim à guerra genocida de Israel em Gaza e aproximar os palestinos de sua tão esperada libertação.

Publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 31 de julho de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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