O assassinato de Ismail Haniyeh, líder político do movimento palestino Hamas, no Irã, é mais uma evidência de que há, no mundo hoje, um Estado pária, fora de controle, que pensa estar acima da lei e poder fazer qualquer atrocidade sem consequências.
Matar Haniyeh e Fuad Shukr, comandante do grupo libanês Hezbollah, representa uma perigosa escalada que deve ter como resposta uma retaliação tanto de Teerã quanto de seus aliados no Levante. O envolvimento iraniano se tornou inevitável sob a decisão de alvejar Haniyeh precisamente na capital do país.
Tudo isso põe o governo dos Estados Unidos de Joe Biden, investido politicamente em mitigar a crise em Gaza por razões eleitorais, e que tanto fala de cessar-fogo, contra as cordas. Qualquer pressão a Israel garantirá a fúria de influentes organizações de lobby sionista, enquanto ajudá-lo necessariamente resultaria em uma guerra aberta por toda a região.
Após as desastrosas guerras no Afeganistão e no Iraque, o público nos Estados Unidos deixou muito claro que não está nenhum pouco interessado em se envolver em novos conflitos no Oriente Médio.
Contudo, escalar o conflito sempre foi o plano do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, algo que deixou bastante óbvio em seu discurso ao Congresso americano, na última semana.
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Netanyahu está com problemas, porque se vê incapaz de conquistar seus objetivos de derrota total ou expulsão da Faixa de Gaza, muito menos a tão prometida aniquilação, do Hamas, seja política ou militarmente.
Netanyahu também fracassou em libertar seus reféns em Gaza, salvo um punhado, ao enfrentar cada vez mais pressão domesticamente.
Sem fim à vista
Dez meses após a deflagração do genocídio em Gaza, não há fim à vista. O fracasso do exército israelense se torna mais evidente com os recordes de sua campanha em morte e mutilação de civis, sobretudo crianças, mediante apoio e armas americanas, com um volume de bombas lançadas que supera cinco Hiroshimas.
Para além de Gaza, Netanyahu foi incapaz de conter outros fronts, levando dezenas de milhares de israelenses a serem evacuados tanto do norte quanto do sul. Netanyahu tampouco conseguiu devolvê-los a suas casas, ao falhar diante das ações militares do Hezbollah, no Líbano, e dos houthis, no Iêmen.
Pelos últimos dez meses, Netanyahu tenta restaurar o conceito de dissuasão, elemento essencial da doutrina militar israelense gravemente degradado pelas ações do Hamas em 7 de outubro. Além disso, tenta restaurar a imagem do aparato de inteligência de Israel, que também colapsou.
Netanyahu evidentemente não quer o fim da guerra. Caso a encerre sem a prometida “vitória total”, haverá um inquérito para responsabilizá-lo pelas perdas, de modo que o remova do poder. Como se não bastasse, Netanyahu enfrenta acusações de corrupção gravíssimas nos tribunais israelenses, capazes de levá-lo à prisão. É assim que o premiê simplesmente deseja a guerra e nada mais do que intensificá-la.
Netanyahu claramente apoia o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seu vigoroso aliado, nas eleições americanas de novembro. Trump transferiu a embaixada de seu país de Tel Aviv a Jerusalém ocupada, reconheceu a “soberania” de Israel sobre as colinas ocupadas de Golã, ostracizou ainda mais a Autoridade Palestina e até mesmo assassinou o eminente comandante iraniano Qassem Soleimani — incorrendo em uma série de ações provocativas e beligerantes.
A instabilidade no Oriente Médio, a prorrogação do massacre em Gaza e as incertezas geopolíticas subsequentes tornam mais difícil que a oponente de Trump nas eleições, a vice-presidente Kamala Harris, seja derrotada em novembro, dado que a crise costuma trabalhar contra a gestão incumbente. Prorrogar e expandir a guerra faz também com que o governo de Joe Biden, cúmplice do genocídio, pareça fraco e ineficaz.
Impacto estratégico
Haniyeh, descendente de sobreviventes da Nakba, ou catástrofe palestina, nasceu e foi criado no campo de refugiados de al-Shati em Gaza. Com os anos, Haniyeh conquistou grande popularidade entre os palestinos. Haniyeh foi o primeiro-ministro do governo eleito do Hamas em 2006 e se tornou líder político do movimento em 2017.
Os palestinos viram incontáveis líderes serem assassinados por um regime colonial que busca sua eliminação de toda e qualquer maneira. Em 2004, os líderes do Hamas Abdel Aziz al-Rantisi e Ahmed Yassin foram assassinados em Gaza em somente três semanas. Diversos outros líderes palestinos foram alvejados por assassinatos, encarceramento e exílio ao longo das décadas de luta por libertação.
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Estrategicamente, o assassinato de Haniyeh não terá um impacto significativo sobre o Hamas, à medida que o grupo é plenamente capaz de substituir suas fileiras com vários candidatos a uma eventual eleição, incluindo Khaled Meshaal, Mousa Abu Marzouk e Khalil al-Hayya.
O mesmo pode ser dito do Hezbollah. Em 1992, Israel assassinou o secretário-geral do grupo libanês, Abbas al-Musawi, substituído por Hassan Nasrallah. Nasrallah tinha 31 anos na ocasião e não era conhecido; ainda assim, tornou-se uma das lideranças mais influentes do Líbano contemporâneo.
Se havia alguma dúvida de que o regime colonial sionista não tem qualquer expectativa de futuro que envolva os palestinos, muito menos lhes permita seu direto soberano a um Estado independente, já não resta alguma diante de tamanha escalada.
O Estado israelense personifica hoje hegemonia, controle, supremacismo e apartheid, ao buscar a limpeza étnica ou a subjugação dos palestinos sob seu projeto de “Grande Israel”. Netanyahu tenta há muito tempo cravar o último prego no caixão da insistente solução de dois Estados, atrás da qual Washington já não consegue se esconder.
Trata-se de um momento da verdade para todas as partes envolvidas, sobretudo diante da recente opinião consultiva do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) condenando a ocupação israelense nos territórios palestinos como ilegal. A ordem internacional que Washington buscou consolidar, em torno de si, desde a Segunda Guerra Mundial, está desmoronando. Toda a sua retórica em torno do Estado de direito, da democracia e de direitos humanos caiu por terra pelas ações de Israel avalizadas pelos Estados Unidos.
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As medidas do Estado sionista dão base ainda às acusações de crime de guerra contra Netanyahu e seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, no Tribunal Penal Internacional.
O assassinato de Haniyeh apenas tornará os palestinos mais unidos em indignação. Ele próprio chamou recentemente protestos em 3 de agosto contra o genocídio em Gaza. Com o chamado a protestos e greves gerais seguindo sem ele, parece que o atentado que ceifou a vida de Haniyeh apenas mobilizará cada vez mais o chamado mundo árabe e islâmico, para dar fim à guerra genocida de Israel em Gaza e aproximar os palestinos de sua tão esperada libertação.
Publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 31 de julho de 2024.
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