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Jantar com Saddam: Peça alimenta reflexões por meio da comédia

Então presidente do Iraque, Saddam Hussein, prepara sua arma para dar o sinal ao início de um desfile militar em Bagdá, em 20 de novembro de 2000 [Karim Sahib/AFP via Getty Images]

Ao assistir à peça de teatro Dinner with Saddam — em português, Jantar com Saddam —, de Anthony Horowitz, no teatro Menier Chocolate Factory de Londres, é inevitável sentir um certo desconforto à medida que o enredo busca retratar a história moderna do Iraque, com todos os seus conflitos e dores, de uma maneira farsesca, ao converter miséria em comédia ao público estrangeiro. Embora seja bem-sucedida em gerar risos constantes na plateia, a questão que perdura é se o próprio povo iraquiano está pronto para rir de seus anos e anos de sofrimento, dado que muitas de suas feridas continuam abertas.

A produção, dirigida por Lindsay Posner, se passa na casa de uma família sunita alauíta de Bagdá, em 21 de março de 2003 — dia que terminou em “choque e pavor”, isto é, o começo da operação e ocupação dos Estados Unidos no Iraque.

O pai, Ahmed, interpretado por Sanjeev Bhaskar — das séries de televisão britânicas Goodness Gracious Me e The Kumars at No. 42 —, é um cidadão comum iraquiano, que trabalha como supervisor da construção civil e se recusa a crer que haverá um ataque a bombas dos Estados Unidos, como não acreditou que a guerra com o Irã aconteceria, assim como a invasão do Kuwait, um elemento do personagem exposto ao público por sua esposa Samira, interpretada por Shobu Kapoor.

Samira representa a voz das ruas, o pânico de mais uma guerra à frente, em uma nação já muito abatida, e o senso de realidade em oposição a Ahmad, que reflete o véu sobre os olhos de uma parcela considerável da população que, em nome da sobrevivência, “mantém a cabeça baixa”, sem jamais discutir política, salvo para repetir a propaganda de Estado, a fim de garantir a segurança de suas famílias.

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O lar é repleto de tensões. Samira busca racionar comida à véspera da guerra; Ahmed tenta desentupir um ralo, embora o fornecimento de água à residência esteja cortado; Rana, a filha do casal, interpretada por Rebecca Grant, nega-se a casar com um de seus primos. Rana é também parte de um grupo revolucionário de oposição em situação de clandestinidade. As tensões se intensificam quando a família recebe a notícia de que o próprio presidente do Iraque, Saddam Hussein, estaria chegando para jantar.

Quando Ahmed, sem querer, envenena o chefe de segurança de Saddam, cabe à filha e à esposa receberem e entreterem o presidente — um reflexo da sociedade iraquiana, em que as mulheres, muitas vezes, se veem forçadas a lidar com diversos aspectos da vida, enquanto seus maridos, irmãos e pais estão no campo de batalha.

A indisposição de Rana diante de um casamento arranjado por seu pai e sua insistência em noivar com um xiita iraquiano é uma tentativa, embora débil, do roteirista de fazer caber todas as questões que assolam o Iraque há décadas e décadas em cerca de duas horas de peça. De fato, tensões entre sunitas e xiitas não eram um problema concreto em Bagdá até a intervenção americana e a recusa dos pais sobre seu amante seria mais convincente caso fosse por sua profissão, um ator aspirante, o que, em uma sociedade conservadora não seria visto como um “trabalho adequado”.

Steven Berkoff — de filmes como 007 contra Octopussy, Laranja Mecânica e Um tira da pesada — interpreta Saddam, de maneira bastante impressionante, ao levar ao palco a natureza hermética de um personagem histórico que fascinou e dividiu o mundo para além da sua morte. A ignorância do presidente sobre os efeitos das sanções das Nações Unidas a seu país, seu fracasso em reconhecer sua própria brutalidade e tirania, e sua crença de que todas as suas ações seriam justificadas “em nome do povo” aproxima o retrato em questão dos elementos associados a sua imagem.

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Na mesa de jantar, a conversa é praticamente unilateral, à medida que Saddam lista as coisas que fez a seu país, enquanto Rana busca expressar a voz da oposição, ao lembrá-lo de aspectos negativos de seu regime, como as guerras contínuas e massacres contra a população curda. Saddam, no entanto, expõe que jamais teria chegado ao poder sem a ajuda do Ocidente e da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos — a CIA. A esta altura, o público é apresentado formalmente ao envolvimento ocidental no drama e na tragédia que assola o Iraque.

A visita súbita de Saddam tem como intuito confundir o exército americano sobre o seu paradeiro, mas não apenas traz medo e tensão como submete a família alauíta a uma vida que não conheciam, de comidas importadas e vinho português. A ironia retratada por roteiro e direção é quão Saddam estaria isolado de seu próprio povo.

A peça termina com duas grandes metáforas ou atos simbólicos. Se são intencionais ou não, não está claro, porém é quase como uma sugestão do que viria a ser o destino de Saddam após 21 de março, quando Ahmad, atrapalhado, presenteia o presidente com um saco de esterco. Conforme se abaixam as cortinas, Samira novamente destaca que os Estados Unidos bombardearão o Iraque, embora Ahmed, sempre otimista — ou, na verdade, delirante — insista que nada vai acontecer e tudo vai ficar bem, embora, sim, seja preciso se livrar de Saddam.

A peça enfatiza que a esperança é um conceito de vida curta no Iraque e que ninguém está imune ao destino trágico que, até hoje, toma o país.

Dinner With Saddam foi encenado na cidade de Londres entre 10 de setembro e 14 de novembro de 2015.

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