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Cuscuz: O segredo do grão ou o alimento da vida

Prato tradicional de cuscuz tunisiano, preparado no restaurante L’Oriente, na capital Tunís, em 25 de janeiro de 2018 [Fethi Belaid/AFP via Getty Images]

Ambientado no porto de Sète, comuna no sul da França, La Graine et le Mulet, lançado no Brasil com o título O segredo do grão, carrega seu espectador a uma jornada pelos dramas da vida familiar de seu protagonista, Slimane Beiji — imigrante tunisiano de 61 anos de idade, interpretado por Habib Boufares.

O filme, lançado originalmente entre os anos de 2007 e 2008, integrou a programação do Festival Cultural Shubbak de 2015, após circular em diversos eventos internacionais de renome da indústria cinematográfica, como Dubai, Veneza e Tribeca.

Dirigido pelo cineasta Abdellatif Kechiche, nascido na Tunísia, La Graine et le Mulet — uma colaboração franco-tunisiana — evidencia-se como um épico intenso e suntuoso, repleto de emoções humanas.

Conhecemos Slimane em um cais onde trabalhou pelos últimos 35 anos. Suas horas de trabalho devem ser cortadas em breve, pois — nas palavras de seu implacável chefe — Slimane está “cansado … e me cansando”. Acompanhamos nosso personagem quando deixa o píer após receber as péssimas notícias, coleta seu peixe fresco de um pescador local, na região portuária, e o entrega às mulheres importantes de sua vida.

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Primeiro, Slimane para na casa de sua ex-esposa, Souad, um tanto ingrata, cujo freezer já está cheio de peixes jamais consumidos. Segundo, visita sua filha obstinada, ocupada em repreender o filho por não conseguir usar o penico. Por fim, ele visita sua amante, Latifa, e a filha dela, Rym, a quem ele se assemelha a uma figura paterna. Latifa e Rym administram o hotel, um tanto acabado, onde Slimane aluga um quarto.

É esta nossa introdução ao relacionamento de Slimane e sua família. Sabemos mais um pouco durante o almoço de domingo: uma cena estendida na qual sua primeira família — três esposas e dois filhos, suas esposas e seus maridos — reúnem-se na casa de sua ex-esposa, Souad. O diretor filma o diálogo de maneira a fazer com que seu espectador se sinta parte dessa família. Kechiche usa planos de movimentação panorâmica rápida, de um rosto a outro, para retratar o calor familiar. Slimane é assunto da conversa, mas parece notavelmente ausente do encontro.

Apreensões financeiras devoram o protagonista, que busca desesperadamente deixar um legado a seus entes queridos. Seus filhos tentam encorajá-lo a voltar à Tunísia para começar um negócio. Slimane, contudo, consegue, de algum modo, realizar um sonho antigo: transformar seu velho barco dilapidado em um restaurante de frutos do mar. A filha de Latifa, Rym, torna-se sua fiel escudeira, enquanto procuram obter uma série de empréstimos e alvarás necessários para que o projeto decole, apesar de confrontarem um intrincado labirinto burocrático.

Não são somente as autoridades que ficam em seu caminho. Amigos fazem chacota de Slimane pelas suas costas. “Abrir um restaurante em um barco? Qual é a dele? Tem um parafuso solto”, afirmam os amigos. Mesmo sua amante, Latifa, sente-se humilhada ao descobrir que Souad, a ex-esposa, seria a cozinheira, ao preparar sua receita familiar de cuscuz de peixe — característica da gastronomia tunisiana.

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Rym, uma jovem mulher inteligentíssima e obstinada, orienta Slimane ao longo de todo o processo. Como uma empreendedora nata, Rym busca se concentrar em garantir que a presença nada imponente de Slimane não o impeça de conquistar seu sucesso. Rym e Slimane concebem um plano: o restaurante realizará um enorme jantar e aqueles que ficaram em seu caminho serão convidados. É a noite em que ambos esperam provar a todos que duvidaram que estavam errados — as apostas são certamente altas.

Chega o grande dia. Como em muitos outros momentos no filme, Kechice recorre a um aparentemente arrastado e tedioso inventário de tarefas domésticas, como descascar batatas para preparar o jantar e outras ações vistas como triviais. Contudo, são nestes momentos, precisamente, que as operações da família se tornam evidentes, ao refletir uma técnica rica e complexa de linguagem e narrativa.

A noite adiante é repleta de drama e de um suspense aflitivo. Latifa se nega a ir e Rym se recusa a ir sem ela — ao contrário, assiste as festividades ocorrerem de uma janela do hotel mal-acabado que sua mãe administra. A vida amorosa do filho imprudente e adúltero de Slimane explode em cena, com consequências severas. Slimane é obrigado a deixar sua própria festa. Enquanto isso, os convidados ficam, pouco a pouco, cada vez mais impacientes à medida que as coisas parecem demorar.

Embora a noite seja a realização dos sonhos de Slimane, são as personagens femininas, notavelmente fortes, que assumem o controle quando as coisas começam a dar errado. O habitual silêncio de Slimane opera como um receptáculo de suas paixões complexas. Será que o plano de Slimane vai realmente dar certo?

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