De mascates à presidência: A comunidade palestina de El Salvador

Na pequena nação centro-americana de El Salvador podemos encontrar traços notáveis de um lugar que dezenas de milhares chamam de lar: a Palestina. Apesar de estarem a mais de 12 mil km de distância, El Salvador e Palestina compartilham mais de um século de história que unem ambos os países e seus povos.

A América Latina abriga a maior diáspora palestina fora do mundo árabe, com cerca de 700 mil pessoas de raízes palestinas radicadas em toda a região. Destes, em torno de cem mil pessoas vivem em El Salvador.

Os palestinos chegaram pela primeira vez em solo salvadorenho no fim do século XIX, à medida que o Império Otomano, que ocupava a maior parte do Oriente Médio na ocasião, passava por um enorme êxodo de seus habitantes. Entre 1860 e 1914, estima-se que 1.2 milhão de pessoas deixaram a região rumo às Américas, em busca de pastos mais verdes.

Os primeiros imigrantes a embarcar na jornada transatlântica e se instalar nos novos países, em maioria, eram cristãos, motivados pela esperança de melhores oportunidades econômicas e um desejo de evitar o recrutamento compulsório à Primeira Guerra Mundial.

LEIA: Em El Salvador, presidente palestino pró-Israel divide a diáspora

“A razão que levou muitos palestinos a migrar é a mesma pela qual muitas pessoas do Levante também o fizeram naquela ocasião: questões políticas e econômicas”, comentou Yousef Aljamal, acadêmico e coautor de A diáspora palestina na América Latina e o Estado palestino. “Eram os dias derradeiros do Império Otomano e a maioria dessas pessoas eram cristãs, que não queriam lutar na guerra pelos otomanos e desejavam uma vida melhor”.

Apenas uma minoria da primeira leva de imigrantes levantinos nasceu na Palestina. No entanto, a maioria daqueles que se instalou em El Salvador eram de Belém.

Dores de crescimento

Ao aportarem, os palestinos se depararam com alternativas limitadas em seu novo lar. Diferente de seus contemporâneos europeus, não desfrutaram de arranjos que antecedessem a viagem, como o emprego no campo, de modo que tiveram de buscar opções por si mesmos.

As oportunidades surgiram nas ruas de El Salvador, onde boa parte dos palestinos começaram a trabalhar como vendedores ou mascates — uma ocupação bastante comum na época entre os imigrantes do Levante.

“Por toda América Latina, mercadores palestinos começaram a vender bens de porta em porta — um trabalho árduo, porém lucrativo. A princípio, vendiam artesanatos religiosos”, comentou Cecilia Baeza, cientista política e acadêmica com enfoque na diáspora. “Muito rapidamente, no entanto, expandiram com sucesso seus próprios negócios a outros produtos manufaturados e a maioria deles conseguiu então abrir suas próprias lojas e negócios em questão de anos”.

Quando a comunidade chegou a El Salvador foram classificados oficialmente como “turcos”, por suas origens otomanas, como era comum entre os imigrantes da região. A classificação, todavia, logo adquiriu uma conotação pejorativa e a comunidade sentiu na pele a discriminação racial. Elites salvadorenhas de descendência europeia — conhecidos como criollos — tinham particular desdém pela comunidade crescente de “turcomanos”.

“Após sua chegada, [os palestinos] enfrentaram grande rejeição”, relembrou ao Middle East Eye Simaan Khoury, membro da Associação Palestino-Salvadorenha e presidente da União Palestina da América Latina. “A burguesia de El Salvador os via como pessoas de classe baixa”.

LEIA: A Diáspora Palestina em El Salvador

Isso se refletiu em âmbito institucional. Em 1921, houve uma mudança nas leis de imigração, ao classificar árabes e chineses como “perniciosos”. Nos anos 1930, sob a ditadura do Maximiliano Hernandez Martinez, uma série de rigorosas leis migratórias foram introduzidas contra “turcos e outras minorias étnicas”. Em 1933, Martinez impôs uma lei para proibir a imigração de negros e asiáticos, além de cidadãos da Arábia, Líbano, Síria, Palestina e Turquia. Em 1936, foi ainda além e proibiu os árabes de abrirem novos negócios por todo o país.

Presidente de El Salvador, Maximiliano Hernandez Martínez, responsável por leis discriminatórias contra os palestinos e outros imigrantes [Wikimedia/Creative Commons]

“Os palestinos foram sobreviventes e conquistaram muita coisa desde então”, observou Khoury. “Começaram a trabalhar no comércio e logo deflagraram uma revolução”.

Superando a discriminação

Apesar dos pesares, a comunidade palestina conseguiu superar a discriminação e a perseguição institucional e se tornar uma comunidade próspera que ajudou a desenvolver a moderna nação de El Salvador.

“É triste que tiveram de enfrentar tudo isso, mas nos traz bastante orgulho saber que chegamos aonde estamos. Francamente, estamos em uma excelente posição social, econômica e política”, acrescentou Khoury.

Não podemos compreender o desenvolvimento de El Salvador sem ponderar sobre os nomes e sobrenomes árabes e palestinos que ajudaram o país a crescer. Nassers, Handals, Simans, Sacas, Safiehs, Zablahs e Bukeles — todos exerceram um papel proeminente em dar forma à presente versão do país centro-americano.

LEIA: Comunidade de El Salvador busca estreitar laços com palestinos de todo o mundo

A consolidação da primeira onda de imigrantes palestinos, como uma geração de mercadores e mascates, permitiu que seus descendentes assegurassem uma base financeira mais sólida, com a qual avançaram cada vez mais ao topo da pirâmide socioeconômica. Muitas famílias palestinas se concentraram na indústria têxtil ou fundaram armazéns bem-sucedidos, que deram vazão a uma recém-descoberta abastança econômica. Tamanha riqueza foi reinvestida na educação das gerações futuras, ao catalisar sua mobilidade social.

“[As famílias palestinas] se empoderaram em termos econômicos, ao assegurar que seus filhos fossem à escola, tivessem sua educação superior e vissem o fruto de seu investimento”, contou Aljamal ao Middle East Eye. “Muitos deles pertenciam originalmente à classe média, e, pouco a pouco, prosperaram nos campos da economia, da política e da cultura. Alcançaram sucesso por conta do trabalho de seus ancestrais e sua capacidade de superar o racismo e, como resultado, queriam mudar essa a conjuntura”.

Praças e presidentes palestinos

Dentro de pouquíssimas gerações, os palestinos se tornaram figuras de destaque no mundo da política, dos negócios e da medicina de El Salvador.

“Os palestinos formam parte essencial do tecido social do país”, destacou Marwan Jebril Burini, embaixador palestino em El Salvador. “Pessoas de raízes palestinas detêm posições influentes e importantes em todos os setores. Contribuíram bastante, em todos os níveis, especialmente no campo da economia. São um motor importante à economia do país, mas também contribuíram bastante politicamente”.

LEIA: A diversificação latino-americana da política externa da Turquia

A força da comunidade política se demonstra pelo fato de que o atual presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tem origens palestinas. Seus avós eram palestinos cristãos de Belém e Jerusalém, que chegaram ao país no começo do século XX.

“Ter um presidente palestino é fonte de orgulho”, afirmou Khoury.

Presidente de El Salvador, Nayib Bukele, junto de sua esposa, Gabriela Bukele, em San Salvador, em 29 de fevereiro de 2024 [Alex Pena/Agência Anadolu via Getty Images]

Bukele, no entanto, não é primeiro político de raízes palestinas a ganhar proeminência. De fato, não é nem mesmo o primeiro descendente de palestinos a chegar à presidência. As eleições de 2004 foram disputadas entre dois palestino-salvadorenhos: por um lado, o conservador Antonio Saca; por outro, o político de esquerda Schafik Handal — com vitória do primeiro.

Quando Handal faleceu dois anos depois, seu caixão foi envolvido em ambas as bandeiras: de El Salvador e da Palestina.

LEIA: Bukele faz a primeira visita de um presidente salvadorenho à Turquia

O impacto social deixado pelos palestino-salvadorenhos também se vê nas ruas da capital San Salvador. Na cidade, encontramos um complexo habitacional chamado Villa Palestina, composto por ruas com nomes de cidades palestinas, além da Praça Palestina e da Praça Yasser Arafat.

Para muitos palestino-salvadorenhos, como Khoury, a história e a influência da comunidade em seu novo lar é uma fonte de orgulho de longa data. “Tenho orgulho de ter raízes palestinas e de ser salvadorenho. Sem nossa integração, não estaríamos na posição em que estamos”.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 18 de agosto de 2022.

Sair da versão mobile