Inteiramente gravado em uma van policial de não mais que oito metros de extensão, o drama Choque — em árabe, Eshtebak —, dirigido por Mohamed Diab, lançado no ano de 2016, retrata cidadãos egípcios de diferentes raízes e inclinações políticas trancados juntos logo após o golpe de Estado, comandado pelo então ministro da Defesa e atual presidente Abdel Fattah el-Sisi, que depôs o governo eleito de Mohamed Morsi.
Conforme o caos se espalha pelas cidades de todo o país, a obra nos tira das ruas e nos confina junto a personagens que se veem presos, a maioria deles por engano, ao serem considerados pelas forças policiais como apoiadores da Irmandade Muçulmana.
O filme começa com dois jornalistas, ambos egípcios, mas um que possui o passaporte dos Estados Unidos, sendo capturados pela polícia enquanto trabalham para cobrir as manifestações. Sua câmera é apreendida e ambos são jogados na van policial com base em que registraram fotografias de oficiais de segurança, suspeitos, portanto, de serem espiões.
Somos então apresentados a uma tendência de acusações falsas, uso de estereótipos, pressupostos equivocados, medo e indignação.
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Conforme tentam atrair os manifestantes para libertá-los, ambos os jornalistas se veem sob uma bateria de violações e acusações. No Egito pós-golpe, não se pode confiar na palavra de ninguém e todos são suspeitos de tudo que acontece a seu redor.
Em vez de ajudar, os manifestantes apedrejam o veículo, precisamente para atacar os “membros da Irmandade Muçulmana lá dentro” e acabam eles mesmos trancafiados, confundidos pela polícia como manifestantes contra o novo regime — isto é, membros ou apoiadores da Irmandade Muçulmana. Seus celulares são confiscados, tornando-os todos incomunicáveis.
As tentativas de dialogar com as autoridades fracassam miseravelmente e os detidos — até mesmo um rapaz de apenas 14 anos de idade — permanecem presos sob violentas ameaças dos agentes militares.
À medida que a van se move pelas ruas, desta vez são apoiadores da Irmandade que se voltam contra ela, levando à captura de uma nova leva de prisioneiros. Tensões correm altas e os detidos discutem.
O caos nas ruas logo se reflete naquele cenário confinado.
Conforme o tempo passa e a energia se esvai, os prisioneiros são forçados a apreender a colaborar uns com os outros, seja ao fazer piadas para atenuar as tensões ou mesmo cuidar dos ferimentos uns dos outros. Não tarda, porém, para que os conflitos latentes venham à superfície e tomem novamente a atmosfera.
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A mesma diversidade se aplica à razão pela qual as pessoas saíram às ruas naquele dia fatídico. Muitas saíram em busca de entes queridos desaparecidos, sem saber onde ou como encontrá-los, na esperança de protegê-los de toda a confusão. É assim que a van policial para ao lado de outro veículo, também repleto de prisioneiros, e os prisioneiros começam a chamar por seus familiares desesperadamente, buscando notícias.
A realidade dos dias de horror que sucederam o golpe militar vem à luz à medida que vivenciamos histórias de pessoas morrendo nas vans policiais superlotadas, repletas, às vezes, com 50 e 60 prisioneiros de uma só vez. Apesar do calor de julho, as autoridades não hesitaram em privá-los de água e muitos detidos morreram devido a desidratação ou fadiga. Estima-se que 37 prisioneiros morreram em uma van policial apenas alguns dias antes, revelam os jornalistas.
É então que descobrimos a verdadeira extensão do problema, quando um policial diz: “Não há lugar nas prisões, então vamos deixá-los aqui até ter vagas”.
Assim segue uma jornada de drama, risadas e horror.
O filme se passa em um período de menos de 24 horas e leva seus espectadores a uma série de reviravoltas em termos de lealdades políticas, relacionamentos familiares e um sentimento redescoberto de empatia e identificação. Isso não incorre somente àqueles detidos, mas até mesmo aos policiais que recebem — e aceitam — ordens para manter e ainda piorar as condições desumanas impostas aos cidadãos em sua custódia.
No fim, contudo, o instinto de sobrevivência une todos eles e o caos a céu aberto leva-os a ações calculadas para buscar estabilizar as condições dentro da van policial. Ainda assim, um futuro incerto os aguarda, como todo o país.
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Embora seja um reflexo direto da vida imediatamente após o golpe militar de 2013, de muitas maneiras, Choque também representa o Egito nos dias de hoje: um país em que aqueles suspeitos de integrar ou simpatizar com a Irmandade Muçulmana são presos e encarcerados em condições hediondas sob acusações capciosas. Choque destaca ainda o colapso da sociedade no Egito.
Trata-se de um filme envolvente e um poderosíssimo lembrete de que a nação é mais forte quando seus cidadãos estão unidos.