O presidente de Bangladesh, Mohammed Shahabuddin, única autoridade executiva no país após a renúncia da primeira-ministra Sheikh Hasina, dissolveu o parlamento nesta terça-feira (6), ao prometer estabelecer um governo interino e novas eleições.
Hasina, que governou o país por quase duas décadas, embarcou em um helicóptero do exército rumo à Índia, nesta segunda-feira (5), após manifestantes ignorarem um toque de recolher e avançarem contra sua residência oficial em Dhaka.
Horas depois, lideranças estudantis, políticos e membros da sociedade civil se reuniram com o presidente e o comando do exército, resultando na dissolução da assembleia, de acordo com ultimato do bloco discente.
A vacância institucional se deu após semanas de protestos intensos contra Hasina. Sua renúncia sucede a morte de cerca de 300 manifestantes, sob repressão dos protestos. No domingo (4), uma noite de violência matou quase cem.
Em pronunciamento à nação, o chefe do exército, general Waker-Uz-Zaman, confirmou que um governo interino será instaurado e pediu calma.
Na segunda, outras 20 pessoas morreram, confirmou uma fonte da polícia à agência de notícias AFP, em meio à invasão de prédios públicos pela população civil.
Há temores de que a crise dê vazão a confrontos sectários no país.
Apesar da violência, no início da tarde, o humor das ruas converteu-se em festa, após a partida. Milhares adentraram no palácio da ex-premiê, enquanto multidões dançavam com bandeiras rubro-verdes sobre tanques nas ruas.
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O Canal 24 de Bangladesh registrou imagens da tomada do palácio, com manifestantes acenando à câmera e deitando-se nas luxuosas camas do local.
A associação policial do país declarou greve “até que a segurança de cada membro das forças seja asseverada”. Estudantes, contudo, formaram grupos orgânicos e assumiram suas tarefas, incluindo o tráfego nas ruas congestionadas da capital.
Os protestos de massa eclodiram contra um controverso plano de cotas empregatícias do serviço público. As autoridades responderam ao fechar universidades e reprimir as manifestações por meio da polícia e das Forças Armadas.
Hasina impôs então um toque de recolher nacional e cortou o acesso a telefonia móvel e internet em todo o país. Os protestos seguiram, apesar dos esforços de mitigação das controversas cotas pela Suprema Corte.
As manifestações evoluíram então a um levante sem precedentes contra a repressão e pela deposição do governo.
Resposta internacional
A diáspora bengali, em países como Estados Unidos, Reino Unido e outros, saiu às ruas em comemoração pela renúncia de Hasina.
Seus Estados anfitriões reagiram ao ecoar apreensão, ao pedir contiguidade do trajeto democrático, moderação das partes e respeito aos direitos humanos.
A União Europeia expressou preocupação sobre “relatos de ataques a locais de culto e membros de minorias religiosas, étnicas e outras em Bangladesh”, segundo o emissário do bloco em Dakha, Charles Whiteley.
Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, alertou que “muitas vidas foram perdidas nas últimas semanas” e pediu “calma e comedimento nos próximos dias”. Miller, contudo, saudou a “moderação” do exército em supostamente rejeitar atos de repressão, mas evadiu uma pergunta sobre o futuro do governo.
António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, segundo seu porta-voz, reiterou demandas por uma “transição democrática, pacífica e ordeira” e pediu “investigações transparentes, imparciais e independentes sobre os atos de violência”.
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O Ministério de Relações Exteriores da Rússia observou em comunicado que “Moscou espera um retorno rápido dos processos políticos internos às normas constitucionais, em um país que a nós é amistoso”.
O ministro de Relações Exteriores da Índia, S. Jaishankar, declarou ao parlamento que seu governo “permanece apreensivo até que a lei e ordem seja restaurada” no Estado vizinho. Hasina deixou Bangladesh rumo a Nova Delhi.
O Ministério de Relações Exteriores da China disse acompanhar “de perto” a situação: “Como um bom amigo e vizinho e parceiro estratégico de Bangladesh, esperamos, com sinceridade, que a estabilidade social seja restaurada em breve”.
Hasina buscava equilibrar o apoio indiano e as relações com Pequim. Índia e China têm milhares de quilômetros de fronteira com Bangladesh, visto, portanto, como território estratégico em âmbito regional e internacional.
Sucessão
Bangladesh sofreu muitos anos de ditadura militar, nas décadas de 1970 e 1980, após a guerra que assegurou sua independência do Paquistão, em 1971. Cidadãos, portanto, mantêm-se alertas sobre um eventual retorno do regime militar.
Reaz Ahmad, diretor do Dhaka Tribune, reportou uma atmosfera “relativamente calma” na capital, mas ressaltou preocupação com os próximos dias: “Este vácuo [no poder] é realmente perigoso por conta do exército. [Os militares] não costumam agir às claras e têm uma missão complexa diante de si”.
O correspondente da rede Al Jazeera, Tanvir Chowdhury, direto da praça Shahbagh — epicentro dos protestos estudantis deflagrados em julho — disse “jamais ter visto algo assim” na capital bengali.
“Todo mundo está celebrando — não apenas os estudantes, mas todo tipo de pessoas. Dizem que tinha que acontecer, que a democracia foi esmagada e que agora se sentem livres”, comentou Chowdhury.
A mensagem das ruas, observou o correspondente, no entanto, é que quem quer que assuma o poder “sabe que não será tolerado qualquer tipo de ditadura ou má gestão e que os estudantes agora têm voz”.
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Uz-Zaman negou a intenção, mas pediu paciência do público para que cesse “quaisquer atos de violência e vandalismo”.
Para Irene Khan, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU), o exército bengali tem uma “tarefa muito árdua à sua frente”.
“Bangladesh tem, é claro, uma tarefa enorme a sua frente”, explicou Khan. “O país não é mais o garoto-propaganda do desenvolvimento sustentável. O governo levou a nação ao desespero e há muito a ser feito agora. O mais importante, porém, é que o exército respeite os direitos humanos”.
“Esperamos que a transição seja pacífica e que haja responsabilização pelos abusos de direitos humanos que foram cometidos”, reiterou.
Algumas lideranças estudantis sugeriram que Muhammad Yunus, consagrado em 2006 com o Prêmio Nobel da Paz por seu programa de microcrédito e distribuição de renda, assuma o governo interino.
Yunus, em Paris para as Olimpíadas, descreveu a renúncia de Hasina como “o segundo dia de libertação do país”.
Opositor de longa data, o regime de Hasina acusou o economista bengali de corrupção, acusação rechaçada por Yunus como motivada politicamente.
Em declaração à rede parisiense AFP, Yunus respondeu aos chamados: “Se é necessário agir em Bangladesh, por amor ao meu país e pela coragem de meu povo, assumirei a responsabilidade”.
Segundo Nahid Islam, líder do movimento Estudantes Contra a Discriminação, afirmou que os manifestantes proporão mais nomes ao gabinete e notou que será “difícil” para as autoridades ignorarem suas reivindicações.