Um vídeo emergiu nesta semana de um estupro coletivo conduzido por carcereiros na penitenciária militar de Sde Teiman, na região do Naqab (Negev), contra um prisioneiro palestino em custódia de Israel.
As imagens, verificadas pela rede Al Jazeera e difundidas na mídia israelense, mostram o prisioneiro sendo escolhido de um grupo maior de detidos algemados contra o chão. A vítima é escoltada a um canto onde soldados seguem a estuprá-lo, ao utilizar escudos para encobrir a câmera de segurança.
O ataque foi tão brutal que, após ser transferido a um hospital, a vítima não conseguia andar, confirmou a imprensa israelense.
Em último caso, dez soldados foram detidos pelo estupro, em 29 de julho, em um caso que abalou a sociedade em Israel e revelou tendências hediondas.
Os oficiais pertencem a uma unidade militar conhecida como Força 100, incumbida de guardar os prisioneiros palestinos no campo de detenção de Sde Teiman, corroborou o jornal israelense Haaretz.
Promotores do próprio exército liberaram três dos acusados no domingo (4), para além dos três previamente soltos por uma audiência militar no colonato de Kfar Yona, em 30 de julho, sob protestos de colonos a favor dos estupradores.
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Grupos de direitos humanos, incluindo a ong israelense B’Tselem, e duas agências das Nações Unidas expressaram preocupação sobre o tratamento concedido por Israel aos prisioneiros palestinos.
No entanto, para lideranças nacionais, incluindo o ministro supremacista das Finanças, Bezalel Smotrich, a indignação se concentra no vazamento do vídeo e não no crime de estupro contra cidadãos em custódia.
No Twitter (X), na noite de quinta-feira (8), Smotrich exigiu uma “imediata investigação penal para localizar os responsáveis por vazar o vídeo que viralizou online, com intuito de ferir os reservistas e que causou danos tremendos a Israel no mundo, de maneira a exaurir toda a força da lei contra os vazamentos”.
Outros, entre os quais o ministro de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, célebre por declarações racistas e inflamatórias insistiram que qualquer ação realizada por agentes do Estado — mesmo o estupro coletivo — é permissível em nome de Israel.
Defendendo o indefensável
No mesmo dia em que os estupradores foram detidos, turbas de colonos radicalizados, ao lado de ministros e deputados, invadiram Sde Teiman em sua defesa. Sem encontrar os criminosos, seguiram à base militar de Beit Lid, a 60 km de distância, onde os oficiais estavam para questionamento e possível orientação.
O motim seguiu durante a audiência judicial, realizada na quarta-feira (7), para ouvir a petição das vítimas, os prisioneiros palestinos de Sde Teiman que denunciaram tortura. A sessão foi interrompida por colonos, que gritavam “Nós somos os soberanos”.
O grupo de lobby israelense Guarding the Soldiers — organização recém fundada para defender soldados denunciados por estupro — alegou à imprensa: “A audiência dessa manhã é um absurdo e um prêmio aos assassinos do Hamas [sic]”.
Ben-Gvir, político responsável pela pasta carcerária, disse a jornalistas é uma “vergonha que Israel prenda seus heróis”. Smotrich, que acompanhou e instigou a invasão à corte, publicou um vídeo no qual insistiu que “soldados merecem respeito”.
Questionado pelo deputado árabe-israelense Ahmad Tibi se seria legítimo “inserir um bastão no reto de uma pessoa”, seu colega no Knesset, Hanoch Milwidsky, membro do partido Likud, chefiado pelo premiê Benjamin Netanyahu, reagiu: “É legítimo tudo que fazemos! Absolutamente tudo!”
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Apenas a ponta do iceberg
O vídeo do estupro coletivo em Sde Teiman é a última peça em um crescente corpo de evidências de maus tratos, tortura, violência sexual, negligência médica e imposição da fome sobre palestinos em custódia da ocupação israelense.
Um relatório intitulado “Welcome to Hell” (“Bem-vindo ao Inferno”), da ong B’Tselem, compilou entrevistas com 55 palestinos detidos desde outubro, a maioria deles soltos sem sequer acusação após períodos variáveis de abusos.
“As condições de Sde Teiman não são únicas. São apenas a ponta do iceberg”, advertiu Shai Parnes, porta-voz da B’Tselem em Jerusalém, à rede Al Jazeera. “Ouvimos relatos similares de abuso sexual, fome e agressão de diferentes prisioneiros mantidos em 16 localidades distintas, em todo o território ocupado”.
“Ao reunirmos os testemunhos”, prosseguiu Parnes, “notamos que cada relato é quase idêntico, não importa idade, gênero ou localização geográfica. Não há dúvida. Este tipo de abuso é absolutamente sistemático”.
Violação da lei internacional
Alegações de abusos endêmicos contra presos palestinos em um sistema de justiça que viola, conforme denúncias, a lei internacional, inclusive mediante crime de apartheid, foram minuciadas em outros relatórios das Nações Unidas.
Na segunda-feira (5), foi a vez do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), somando a um dossiê a ser publicado em breve — visto pela rede Al Jazeera em março — da Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA).
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Ao responder a alertas do serviço de segurança interna Shin Bet, sobre a superlotação nas prisões, Ben-Gvir repetiu seu chamado por execuções sumárias, ao insistir em sua missão declarada de “piorar as condições dos terroristas [sic] e reduzir seus direitos ao mínimo do mínimo requerido por lei”.
A maioria dos presos, porém, carece de processo, sem julgamento ou sequer acusação. Em dez meses, Israel dobrou a dez mil a população carcerária palestina, sob esforços de punição coletiva que incluem uma campanha de prisão na Cisjordânia.
As estimativas excluem, no entanto, palestinos capturados em Gaza, onde imagens de caminhões lotados de civis despidos e enfileirados — incluindo crianças —, remeteram a imagens do Holocausto nazistas.
A crise e a escalada nas violações coincide com o genocídio israelense em Gaza, com ao menos 40 mil mortos e 90 mil feridos, além de dois milhões de desabrigados.
Na Cisjordânia, são quase 600 mortos e cinco mil feridos nas mãos do exército, junto a sucessivos pogroms conduzidos por colonos ilegais contra cidades e aldeias palestinas, que destroem terras e propriedades nativas.
Sobre as prisões, não obstante, Ben-Gvir se vangloriou: “Tudo que foi publicado sobre as condições abomináveis é a mais pura verdade”.
Direitos humanos no cadafalso
Os Estados Unidos, maior aliado de Israel, caracterizou as acusações de violência sexual contra prisioneiros palestinos como “horríveis”, ao pedir a Israel que investigue o caso “rápida e integralmente”.
Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado americano, alegou à imprensa: “É preciso haver tolerância zero para violência sexual ou estupro de quaisquer detidos. Ponto final. Essa é uma crença fundamental dos Estados Unidos”.
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Ainda assim, imagens de Sde Teiman ecoaram imagens da penitenciária militar da Baía de Guantánamo, onde prisioneiros iraquianos e outros foram encarcerados por anos e anos sob violações sistêmicas e institucionalizadas de natureza similar.
Na quinta-feira (8), a União Europeia declarou repúdio. O porta-voz Peter Stano disse à rede Politico: “A Europa está profundamente apreensiva pelas alegações de violações e abusos de direitos humanos, incluindo tortura e abuso sexual de palestinos detidos na instalação militar de Sde Teiman em Israel”.
Todavia, sem quaisquer sanções senão notas de repúdio, muitos em Israel persistem na defesa das condições hediondas impostas aos presos palestinos, incluindo estupro, em meio a uma campanha de desumanização e propaganda de guerra.
Para o analista político Ori Goldberg, radicado em Tel Aviv: “A questão não é bem sobre o estupro [sic]. A questão é se Israel ou os israelenses podem ser reprimidos por aquilo que fazem para defender seu Estado?”
A resposta se dá, contudo, no banco dos réus do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), com sede em Haia, onde Israel responde por crime de genocídio em Gaza sob denúncia da África do Sul, deferida em 26 de janeiro.
Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant, que aderiram a falas desumanizantes ao logo da guerra, ao caracterizar os palestinos como “crianças das trevas” ou “animais humanos”, têm mandado de prisão solicitado no Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga indivíduos, também em Haia.
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Na opinião de muitos cidadãos israelenses, explicou Goldberg, não importa, contudo, o quão “imoral” as ações possam parecer ao mundo externo, desde que se realizem em nome do Estado.
“Tivemos um jornalista no noticiário da manhã que criticou não o estupro em si, mas o fato de que foi feito de maneira desorganizada”, comentou Goldberg.
O analista israelense insiste se tratar de uma minoria, muito embora, mesmo entre os chamados centristas e liberais de Israel, pouco se faça para responsabilizar criminosos ou agir em nome dos direitos palestinos.
Neste sentido, concluiu Goldberg: “Tem nada a ver com as vítimas, é tudo sobre Israel”.