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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Detrás das linhas de frente: Relatos de resistência e resiliência palestina

Como chefe de saúde mental na Cisjordânia, a dra. Samah Jabr buscou desenvolver um modelo de serviços que correspondesse com os recursos disponíveis
Soldados israelenses montam guarda sobre um campo de papoulas diante de um protesto de jovens palestinos, junto ao Muro do Apartheid, na aldeia de Bilin, na Cisjordânia ocupada, em 18 de março de 2011 [Abbas Momani/AFP via Getty Images]

Ao aparentemente entretecer anedotas pessoais com análises detalhadas do impacto psicológico da vida na Palestina ocupada, a psiquiatra e autora, dra. Samah Jabr relata seus pontos de vista sobre o que significa resistência e resiliência no contexto da atual realidade sob ocupação.

Este documentário — do original francês, Derrière les fronts: Résistances et résiliences en Palestine; ou Detrás das linhas de frente: Resistência e resiliência na Palestina —, de 2017, começa com a dra. Jabr relatando como, um dia, a caminho da Universidade de an-Najah, em Nablus, na Cisjordânia ocupada, foi parada em um checkpoint militar de Israel. O soldado a serviço apontou um fuzil através da janela, diretamente contra seu peito, e procedeu a pedir seus documentos.

A um grupo de mulheres, a dra. Jabr reafirma que esta experiência não representa, de modo algum, a pior experiência à qual os palestinos estão submetidos. Desta maneira, suas vivências sobre o medo são naturalmente distintas de outras pessoas em outras partes do mundo — não acostumadas a terem o medo utilizado como um instrumento estratégico contra o seu cotidiano.

A psiquiatra aprofunda sua linha de raciocínio com uma observação de que, embora a maioria dos palestinos consiga se identificar, em âmbito individual, com seus vizinhos e colegas israelenses, a dicotomia imposta de suas respectivas realidades diárias parece implicar que “quanto mais respiram os israelenses, mais os palestinos são asfixiados”.

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Desenvolver um debate sobre essa realidade e seus efeitos é o tema central do projeto documental dirigido por Alexandra Dols. Ao navegar pelo francês, inglês e árabe, a dra. Jabr enumera o impacto da violenta ocupação israelense sobre gerações e gerações de Palestinos, no que ela confirma ser a contínua Nakba — a “catástrofe” palestina, cuja pedra fundamental é a criação do Estado de Israel, mediante limpeza étnica planejada, em 1948.

A psiquiatra insiste que o trauma que teve início naquele ano contribui com a reiterada retraumatização de toda a sociedade palestina, ao afetar até mesmo quem quer que se considere “apolítico” ou “individualista”. A dra. Jabr enfatiza que, embora muitos dos transtornos mentais sejam claramente categorizados em termos médicos, não há nome para o que os palestinos vivem, sob um sistema que dia após dia busca reduzir, repelir ou mesmo negar sua identidade.

A dr. Jabr observa, no documentário, que a ocupação em Jerusalém, Cisjordânia e Faixa de Gaza são determinantes à situação, porém aponta que políticos e líderes palestinos não estão fazendo o suficiente para combater os efeitos psicológicos da conjuntura. De um dos pontos mais interessantes de seus relatos, a psiquiatra observa que, em muitos casos, a retórica do terrorismo, empregue pela comunidade internacional para difamar e criminalizar a resistência palestina, é ecoada até mesmo por lideranças nacionais. Tal retórica chegou a ponto de se internalizar na própria sociedade palestina, ao colaborar, segundo a médica, para os obstáculos a um desenvolvimento saudável da identidade, assim como para respirar no descreve como uma “prisão mental”.

O filme registra também vozes de palestinos de todo o espectro político e geográfico, desde Abaher el-Sakker e Rula Abu Duhou, professores da Universidade de Birzeit, nos arredores de Ramallah, a Ghadir al-Shafie, cidadã palestina de Israel que ajuda a gerir a Aswat — uma organização para mulheres homossexuais palestinas. Cada qual levanta questões, desde a fragmentação da sociedade nacional através de uma intrincada rede de permissões, proibições e documentos de identidade à forme como tempo e espaço se congelam aqueles aprisionados, tanto em prisões militares quanto no sentido mais amplo do controle sob ocupação.

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Al-Shafie, por exemplo, traz à luz a questão do pinkwashing, expressão que se refere à forma como Estados opressores, como Israel, apresentam-se como aliados LGBTQIA+, a fim de encobrir ou negar seus crimes e violações nas mais diversas arenas. Segundo al-Shafie, a luta por igualdade caminha de mãos dadas com a luta da sociedade palestina como um todo contra a ocupação militar e reconhecer a interseccionalidade entre os campos é algo essencial.

Ao refletir sobre a situação, a dr. Jabr usa a metáfora “dos falsos pavões e das pequenas papoulas vermelhas”, em alusão à forma como aqueles em situação de poder olham de cima aos palestinos e sua sociedade. Para a médica, como as papoulas vermelhas que crescem nas colinas e vales, os palestinos podem ter vidas frágeis e breves, mas detêm também uma capacidade coletiva de mobilizar a revolução dos “oprimidos da terra”. A dra. Jabr fala de uma sociedade palestina afogada no luto, mas que não recai à mágoa ou ao desespero, como a crença de que sempre haverá papoulas vermelhos mesmo se a terra for arrasada.

Essa analogia serve à percepção das raízes profundas do povo palestino, assim como a sua resiliência e resistência cultural e coletiva, que vieram a caracterizar os protestos e greves no âmago das histórias apresentadas pelos entrevistados deste documentário. Ainda assim, tudo isso tem seu impacto psicológico, incluindo depressão e uma grave internalização do sentimento de inferioridade, levando a uma perda coletiva sequer de expressar a dor. Qual o antídoto? Lembrar aos palestinos lutam por liberdade e não por vingança.

Esta é uma abordagem original ao explorar as complexidades da vida como palestino. Detrás das linhas de frente proporciona um olhar único a efeitos pouco discutidos das ações israelenses em Jerusalém, Cisjordânia e Gaza. A amálgama de entrevistas francas com uma cinematografia belíssima torna o filme uma programação obrigatória a todos que buscam compreender a resistência e resiliência contínuas do povo palestino.

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