Ao aparentemente entretecer anedotas pessoais com análises detalhadas do impacto psicológico da vida na Palestina ocupada, a psiquiatra e autora, dra. Samah Jabr relata seus pontos de vista sobre o que significa resistência e resiliência no contexto da atual realidade sob ocupação.
Este documentário — do original francês, Derrière les fronts: Résistances et résiliences en Palestine; ou Detrás das linhas de frente: Resistência e resiliência na Palestina —, de 2017, começa com a dra. Jabr relatando como, um dia, a caminho da Universidade de an-Najah, em Nablus, na Cisjordânia ocupada, foi parada em um checkpoint militar de Israel. O soldado a serviço apontou um fuzil através da janela, diretamente contra seu peito, e procedeu a pedir seus documentos.
A um grupo de mulheres, a dra. Jabr reafirma que esta experiência não representa, de modo algum, a pior experiência à qual os palestinos estão submetidos. Desta maneira, suas vivências sobre o medo são naturalmente distintas de outras pessoas em outras partes do mundo — não acostumadas a terem o medo utilizado como um instrumento estratégico contra o seu cotidiano.
A psiquiatra aprofunda sua linha de raciocínio com uma observação de que, embora a maioria dos palestinos consiga se identificar, em âmbito individual, com seus vizinhos e colegas israelenses, a dicotomia imposta de suas respectivas realidades diárias parece implicar que “quanto mais respiram os israelenses, mais os palestinos são asfixiados”.
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Desenvolver um debate sobre essa realidade e seus efeitos é o tema central do projeto documental dirigido por Alexandra Dols. Ao navegar pelo francês, inglês e árabe, a dra. Jabr enumera o impacto da violenta ocupação israelense sobre gerações e gerações de Palestinos, no que ela confirma ser a contínua Nakba — a “catástrofe” palestina, cuja pedra fundamental é a criação do Estado de Israel, mediante limpeza étnica planejada, em 1948.
A psiquiatra insiste que o trauma que teve início naquele ano contribui com a reiterada retraumatização de toda a sociedade palestina, ao afetar até mesmo quem quer que se considere “apolítico” ou “individualista”. A dra. Jabr enfatiza que, embora muitos dos transtornos mentais sejam claramente categorizados em termos médicos, não há nome para o que os palestinos vivem, sob um sistema que dia após dia busca reduzir, repelir ou mesmo negar sua identidade.
A dr. Jabr observa, no documentário, que a ocupação em Jerusalém, Cisjordânia e Faixa de Gaza são determinantes à situação, porém aponta que políticos e líderes palestinos não estão fazendo o suficiente para combater os efeitos psicológicos da conjuntura. De um dos pontos mais interessantes de seus relatos, a psiquiatra observa que, em muitos casos, a retórica do terrorismo, empregue pela comunidade internacional para difamar e criminalizar a resistência palestina, é ecoada até mesmo por lideranças nacionais. Tal retórica chegou a ponto de se internalizar na própria sociedade palestina, ao colaborar, segundo a médica, para os obstáculos a um desenvolvimento saudável da identidade, assim como para respirar no descreve como uma “prisão mental”.
O filme registra também vozes de palestinos de todo o espectro político e geográfico, desde Abaher el-Sakker e Rula Abu Duhou, professores da Universidade de Birzeit, nos arredores de Ramallah, a Ghadir al-Shafie, cidadã palestina de Israel que ajuda a gerir a Aswat — uma organização para mulheres homossexuais palestinas. Cada qual levanta questões, desde a fragmentação da sociedade nacional através de uma intrincada rede de permissões, proibições e documentos de identidade à forme como tempo e espaço se congelam aqueles aprisionados, tanto em prisões militares quanto no sentido mais amplo do controle sob ocupação.
Al-Shafie, por exemplo, traz à luz a questão do pinkwashing, expressão que se refere à forma como Estados opressores, como Israel, apresentam-se como aliados LGBTQIA+, a fim de encobrir ou negar seus crimes e violações nas mais diversas arenas. Segundo al-Shafie, a luta por igualdade caminha de mãos dadas com a luta da sociedade palestina como um todo contra a ocupação militar e reconhecer a interseccionalidade entre os campos é algo essencial.
Ao refletir sobre a situação, a dr. Jabr usa a metáfora “dos falsos pavões e das pequenas papoulas vermelhas”, em alusão à forma como aqueles em situação de poder olham de cima aos palestinos e sua sociedade. Para a médica, como as papoulas vermelhas que crescem nas colinas e vales, os palestinos podem ter vidas frágeis e breves, mas detêm também uma capacidade coletiva de mobilizar a revolução dos “oprimidos da terra”. A dra. Jabr fala de uma sociedade palestina afogada no luto, mas que não recai à mágoa ou ao desespero, como a crença de que sempre haverá papoulas vermelhos mesmo se a terra for arrasada.
Essa analogia serve à percepção das raízes profundas do povo palestino, assim como a sua resiliência e resistência cultural e coletiva, que vieram a caracterizar os protestos e greves no âmago das histórias apresentadas pelos entrevistados deste documentário. Ainda assim, tudo isso tem seu impacto psicológico, incluindo depressão e uma grave internalização do sentimento de inferioridade, levando a uma perda coletiva sequer de expressar a dor. Qual o antídoto? Lembrar aos palestinos lutam por liberdade e não por vingança.
Esta é uma abordagem original ao explorar as complexidades da vida como palestino. Detrás das linhas de frente proporciona um olhar único a efeitos pouco discutidos das ações israelenses em Jerusalém, Cisjordânia e Gaza. A amálgama de entrevistas francas com uma cinematografia belíssima torna o filme uma programação obrigatória a todos que buscam compreender a resistência e resiliência contínuas do povo palestino.
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